quinta-feira, 13 de março de 2008


Filosofia, Pragmatismo e Ecologia de Emergência
Do site do Filósofo
http://www.ghiraldelli.pro.br/

Aristóteles chamou os primeiros filósofos de physiologoi. Eles começaram a filosofar na Jónia, uma colónia grega que, hoje, é parte da Turquia. A preocupação daqueles pensadores era com a physis, que de modo forçado traduzimos por “natureza”. Eles não separavam, como a maioria de nós faz hoje, os elementos humanos dos elementos da Terra, como sendo uns do “âmbito social” e outros do “âmbito natural”. Hoje em dia são os positivistas e os historicistas que insistem nisso. E o fazem desde o final do século XIX. Mas nós, pragmatistas, desde William James e John Dewey até Donald Davidson e Richard Rorty, tendemos a ter um maior carinho com a visão holística dos primeiros filósofos, pois imaginamos que a distinção que podemos fazer não é entre história e natureza e, sim, entre o que é natural é o que é o sobrenatural que, enfim, descartamos.

Mas nossa posição é, de fato, próxima da dos physiologoi? Em parte. E no que nossa posição e a deles nos ajuda, hoje, a levar a ecologia a sério? É necessário conversar e reflectir. Pois o assunto não é mais “moda”, é destino.

Os physiologoi não desacreditaram dos deuses. Mas desacreditaram do sobrenatural. Colocaram os deuses juntos com os mortais, todo sob as mesmas descrições. Os deuses, uma vez entre nós, deveriam agir como nós. Ou então, que ficassem de fora de nosso mundo. Ou seja, as descrições dos physiologoi não admitiam a intervenção sobrenatural nas cadeias causais naturais. Assim, não destruíram a religião e os deuses, mas deram um basta na intervenção mágica, mítica. Quiseram estabelecer descrições do mundo como um mundo inteligível à razão humana. Eles enxergaram na physis uma parente próxima do logos. Quando Sócrates surgiu em Atenas, esse movimento de racionalização continuou. Sócrates também não destruiu a religião e os deuses. Ele promoveu, sim, uma reforma religiosa. Ele insistiu – diferentemente de todos os outros gregos e da tradição de Atenas – que os deuses não agiriam de forma não-ética, ou seja, tapeando os mortais ou lhes causando danos. Isso, para Sócrates, era agir com virtude. E ser virtuoso, nesse caso, era ser racional. Assim, Sócrates deu força para explicações nutridas pelo logos na medida em que colocou os deuses sob o controle de uma moral com certo padrão, retirando-os do comportamento idiossincrático contado nos mitos e cosmogonias. O novo ethos defendido foi, para Sócrates, aquilo que a physis foi para os physiologoi.

Assim, à primeira vista, podemos dizer que houve uma continuidade entre o pensamento dos physiologoi e o de Sócrates. Em ambos os casos, o mundo deveria ser inteligível e, sendo assim, teria de ser regrado pelo logos, pela razão. Todavia, essa continuidade foi parcial. Pois, com Sócrates, a physis não ficou em segundo plano, ela simplesmente não ficou em plano algum – ela desapareceu da filosofia. O “mundo natural”, daí para diante, passou a ser crescentemente uma preocupação de outros que não os filósofos. É claro que isso demorou para acontecer. Mas quando o Renascimento findou e entramos no que os historiadores, depois, periodizaram como sendo “a modernidade”, os filósofos foram marcados para se transformarem em especialistas em “ciências filosóficas”, e estas, por sua vez, não deveriam mais conter o estudo da natureza. No século XVIII tivemos os últimos filósofos-cientistas. No final do século XIX já não tínhamos mais esse tipo de pensador. A universidade moderna já havia instaurado senão totalmente ao menos as divisões básicas que conhecemos hoje entre os vários campos do saber humano. Assim, aos filósofos não cabia mais o interesse pela Terra. O próprio homem deixou de ser o seu organismo e, então, se havia algo nele que os filósofos ainda poderiam estudar, era a alma em sua vida individual ou coletiva. Mas nem isso ficou sob comando filosófico. No decorrer do século XX esses elementos passaram a ser objeto da psicologia, da sociologia e da ciência política. Foi o fim completo das possibilidades de um pensamento mais integrado. Os pragmatistas ficaram fora disso. Mas eles não conseguiram fazer muito, uma vez que não tiveram aliados. O “espírito da época” do século XIX ganhou muitos intelectuais no século XX. E até pouco tempo atrás ninguém duvidava que era correcto manter a divisão entre história e natureza, entre sociedade e natureza. Não à toa os estudantes aprendem, ainda hoje, em dividir as ciências em “humanas”, onde a natureza não entra, e “biológicas e exactas”, onde toda a natureza é acolhida, inclusive o organismo do homem.

Os próprios filósofos começaram a não mais entender o que ocorria no mundo da ciência e, então, eles mesmos quiseram se afastar desse tipo de conhecimento. Mantivemos nas faculdades de filosofia a disciplina “filosofia da ciência” e, no entanto, ela começou a ser feita, cada vez mais, por pessoas que conheciam vários discursos meta-científicos e, no entanto, não sabiam operar com a ciência básica, que teria de ter sido ensinada na escola de nível médio.

O pensamento ecológico do século XX quis romper com isso. Mas não teve a sorte. E quando surgiu como partido político no mundo todo (os Partidos Verdes), foi tomado pelos “desenvolvimentistas” como algo ligado ao “retrocesso romântico hippie”, algo de “gente dos anos sessenta”. Todavia, talvez possamos dizer que o esforço não foi de todo em vão. Foram os poucos “românticos” e “gente maluca” do Greenpeace que mantiveram a ideia ecológica viva. Prepararam o terreno para o que é, hoje, a nossa “consciência ecológica”. Essa consciência ecológica, agora, precisa ser ampliada e reforçada. E não se trata mais de uma “questão de princípios” e de posição filosófica, ainda que se trate, sim, disso mesmo. Agora, chegamos em uma situação que teremos de voltar a pensar um pouco como os physiologoi. E não por princípios, e sim por razões pragmáticas. Nossa vida individual está em jogo. Não é o futuro dos nossos netos que está em perigo, mas o nosso mesmo e de nossos filhos. O ex-presidente vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, que é porta-voz da ONU para questões atinentes ao “aquecimento global”, está certo: chegamos na beira do precipício.

O que a filosofia, então, pode fazer? Nós filósofos temos de voltar a entender a Terra como nossa casa. Nossa casa não é nossa pátria ou o lugar de nossa família. É Gaia. E ela parece não estar mais disposta a conviver com a nossa agressão. Caso pudermos olhar para a physis, novamente, como o estofo do logos, melhoraremos a nossa visão sobre o que está ocorrendo. Isso pode nos ajudar na segunda parte da nossa tarefa. Qual? Precisamos nos inteirar dos aspectos técnicos do “aquecimento global” e, então, montarmos argumentos pragmáticos capazes de convencer cada vez mais gente do seguinte: os efeitos devastadores do “aquecimento global” não são “ficção científica”. A fome não será ficção científica. E ela virá, inclusive, no Brasil – rapidamente. Os efeitos sobre a nossa agricultura já se farão sentir neste ano de 2007, como os furacões não previstos já mostram, para os Estados Unidos, que as coisas estão caminhando muito rápido para uma situação incontrolável.
E qual a razão de nós, filósofos, termos de entrar nessa nova militância? Ou seja, por que não entramos apenas como gente comum, que quer ver o mundo salvo? Qual a razão de termos de entrar como filósofos? É que muitos esperam de nós que tenhamos os melhores argumentos para convencer republicanos americanos, chineses e indianos que eles não podem se opor às iniciativas que a ONU quer tomar para impedir o colapso. Uma parte dos Estados Unidos, que segue Bush, se aliou aos governos da Índia e da China, para contestar a “polícia ecológica” que a ONU quer criar. É a aliança entre grandes industriais americanos e governos de dois imensos e populosos países emergentes, cuja mão-de-obra é baratíssima e, então, querem continuar a crescer na medida em que servem aos industriais americanos. Esse elo de irracionalidade pode ser quebrado? Sim. Mas não pelo lado da China e da Índia. Esses países possuem governos que farão de tudo para se manterem no poder por meio de uma política suicida do pondo de vista ecológico. A mudança de posição principal tem de ocorrer nos Estados Unidos. É ali que existe uma classe média que não se contenta em viver. Ela quer viver e quer que seus netos vivam. De todos os povos do mundo, são os americanos de classe média os que mais jogam fichas na “vida futura do país”. São eles que cultivam a ideia de plantar uma árvore para que o neto venha usufruir da sombra ou ir para a guerra para que o país, depois de muitas gerações, ainda seja uma grande pátria. Essa ideia do americano médio de longevidade da pátria pode ser a chave. Caso nós, filósofos, pudermos mostrar a essa gente que eles podem não deixar nada aos filhos e muito menos aos netos, então, talvez, eles comecem a votar em gente diferente de Bush. Eles até fizeram isso, votando em Al Gore. Mas o fato de Al Gore ganhar e não levar, já mostrou bem o quanto a democracia americana pode estar funcionando como uma plutocracia. Ironicamente, agora, tem cabido ao próprio Al Gore correr o mundo e avisar a todos que todos devem avisar os americanos de que, mais uma vez, dependemos dos Estados Unidos para nos salvarmos. E desta vez o inimigo é bem mais complexo e poderoso que Hitler. E está em todo lugar.

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