sábado, 20 de setembro de 2008








O «BLOG DO RAFA», por Fátima Pombo
Um blog para todos sobre um livro que não escolhe idades
http://oslivrosdorafa.blogspot.com/

Viaje pelo «Blog do Rafa» e não deixe de ler o livro que lhe deu origem, «Rafa e as Férias de Verão», também da autoria de Fátima Pombo, publicado pela editora
Trinta Por Uma Linha(http://editoratrintaporumalinha.blogspot.com/)

Veja-se ou reveja-se, nesse vigoroso estado da adolescência, onde todas as emoções brotam livremente e cheias de contradições. No seu estado de alerta, Rafa passa o mundo a pente fino, deixando-se levar pela sua imaginação efervescente, sem lhe escapar nada.
«Os jovens vão-se encontrar em certas situações e os graúdos lembrar-se-ão da sua juventude e talvez abram os olhos para algumas realidades. A não perder!», afirma Analu Vilas (Bioquímica, Leuven - Bélgica).



* «A RAZÃO DE SER DESTE BLOG»

«OLÁ!
Vamos fazer deste blog um sítio para conversarmos sobre a realidade de ser rapaz e rapariga nos tempos de hoje?
O Rafa é como tu: um rapaz inteligente, com imaginação, que gosta de música, toca bateria, que tem irmãs e uma cadela, que tem ideias próprias e, claro, tem também muitas dúvidas e contradições e chatices.
Neste blog também queremos a presença das raparigas. São fundamentais. O Rafa até tem uma amiga muito especial, a Pilar.
Vamos dizer o que pensamos de ‘Rafa e as Férias de Verão’ e começar a levantar o véu sobre o próximo livro que se chama ‘Rafa e a Liberdade’!
Há muitas aventuras para revelar e em que tu podes participar neste Blog do Rafa.
Anda! Precisamos de ti!».

Quem não deseja a LIBERDADE? Pois é, caro leitor, mais uma novidade a não perder: o segundo livro sobre o Rafa, «Rafa e liberdade», vem a caminho, com publicação prevista para 2009. Tal como o primeiro, aguarda por si. Esteja atendo. Na altura devida, será informado.
Para já apenas sabemos que: «depois de uns dias divertidos, cúmplices, ensolarados com Pilar, em Barcelona, o que reforçou a sua ligação e entendimento, Rafa descobre que os pais lhe cancelaram a prometida viagem a Roma onde celebraria os seus 16 anos. Então, furioso e indignado, toma ‘uma decisão íntima, radical, implacável’: partir de comboio à descoberta de um mundo novo e inesperado.» (Fátima Pombo, «Rafa e a Liberdade»).
E o resto? O resto, descubra por si. Basta acompanhar as aventuras do Rafa, neste segundo livro.



* RAFA (SAI) NO "PÚBLICO"


«No Jornal “Público”, Sábado, 2 de Agosto, a jornalista Rita Pimenta escreveu o seguinte "apontamento" sobre o livro Rafa e as férias de Verão, de Fátima Pombo, edição da Trinta Por Uma Linha:

“As férias de Verão de um rapaz de 15 anos são contadas na primeira pessoa de forma viva e envolvente. Rafa é introspectivo e observador e vai dando conta das análises que faz do mundo e das pessoas. Considera o pai ultrapassado e a mãe culpada. Quem não conviveu já com os comentários cruéis, mas muitas vezes certeiros, de adolescentes à procura de um caminho?
Entre borbulhas, uma espécie de bigode, alguma penugem no peito, duas irmãs mais novas, uma cadela e o divórcio dos pais, Rafa tenta durante as férias encontrar algum sossego mental. Ter a Pilar por perto parece ajudar, mas só às vezes. “É inacreditável! Está tudo bem, até está toda a gente a rir-se, mas por uma pequena coisa, de repente, as miúdas viram como o vento e ficam amuadas. (…) Nós, os rapazes – ou homens – não somos assim”.»

Ainda não leu este livro? De que é que está à espera? Então vá: leia e viaje, de novo, pelo «Blog do Rafa». E não se esqueça: deixe o seu comentário no CLUBE DE FÃS DO RAFA:clubedefasdorafa@gmail.com


«Parabéns à autora que, de uma forma perspicaz e muito divertida, nos transporta para a realidade da adolescência dos tempos modernos e, em simultâneo, nos remete para esses tempos tão especiais do nosso próprio passado.
Aguardo impaciente pelo "Rafa e a liberdade"!, Ana (39 anos, mãe de dois futuros “Rafas” e uma futura Pilar...)».
Para conhecer todas as opiniões dos fãs do «Rafa e as férias de verão», já ansiosos pela publicação do segundo livro, «Rafa e a Liberdade», volte ao Blog do Rafa.

Isabel Rosete
(Divulgação e adaptação)



sexta-feira, 19 de setembro de 2008


O Filósofo para Sócrates
Um curinga em Atenas – O Mundo de Sofia – Jostein Gaarder

(...)
Sócrates foi contemporâneo dos sofistas*. Como eles, Sócrates também se ocupava das pessoas e da vida das pessoas, e não dos problemas dos filósofos naturais. Alguns séculos mais tarde, um filósofo romano – Cícero – disse que Sócrates havia trazido a filosofia do céu para a terra, transformado cidades e casas em sua morada e levado as pessoas a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal.
Mas Sócrates diferia dos sofistas num ponto muito importante. Ele não se considerava um sofista, isto é, uma pessoa instruída, sábia. Ao contrário dos sofistas, ele não cobrava absolutamente nada por seus ensinamentos. Não, Sócrates se autodenominava filósofo, no sentido mais verdadeiro da palavra. Um “filo-sofo” é, na verdade, um “amante da sabedoria”, alguém cujo objetivo é chegar à sabedoria.
(...) Os sofistas cobram por suas exposições mirabolantes, e a história registra que tais “sofistas” têm aparecido e desaparecido com bastante freqüência. Estou pensando agora naqueles professores e nos sabidões que ou estão satisfeitos com o pouco que sabem, ou então vivem se gabando de que sabem um monte de coisas das quais na verdade não fazem a menor idéia. Você certamente já encontrou “sofistas” como esses em sua vida. Um verdadeiro filósofo, Sofia, é alguém completamente diferente; é o extremo oposto.
Um filósofo sabe muito bem que, no fundo, ele sabe muito pouco. Justamente por isto ele vive tentando chegar ao verdadeiro conhecimento. Sócrates foi uma dessas raras pessoas. Ele sabia muito bem que nada sabia sobre a vida e o mundo. E agora é que vem o mais importante: o fato de saber tão pouco não o deixava em paz.
Um filósofo, portanto, é uma pessoa que reconhece que há muita coisa além do que ele pode entender e vive atormentado por isto. Desse ponto de vista, ele é mais inteligente do que todos os que vivem se vangloriando de seus pretensos conhecimentos. “Mais inteligente é aquele que sabe que não sabe”, lembra-se? O próprio Sócrates dizia que a única coisa que sabia era que não sabia de nada. Grave bem esta afirmação, pois esta confissão é uma coisa rara mesmo entre os filósofos. Além disso, é tão perigoso fazer uma declaração dessa assim publicamente que ela pode lhe custar a vida. Os que questionam são sempre os mais perigosos. Responder não é perigoso. Uma única pergunta pode ser mais explosiva do que mil respostas.
Você já ouviu a história das roupas novas do imperador? Na verdade, o imperador estava completamente nu, mas nenhum de seus súditos ousava lhe dizer isto. De repente, uma criança gritou que o imperador estava pelado. Era uma criança corajosa, Sofia. Da mesma forma, Sócrates ousou mostrar às pessoas que elas sabiam muito pouco. Já nos referimos às semelhanças entre as crianças e os filósofos, lembra-se?
Para ser mais preciso: a humanidade está diante de questões importantes, para as quais não é fácil encontrar uma resposta adequada. E então abrem-se duas possibilidades: podemos simplesmente enganar a nós mesmos e o resto do mundo como se soubéssemos de tudo o que vale a pena saber, ou então podemos simplesmente fechar os olhos para essas questões importantes e desistir para sempre de ir em frente. Isto divide a humanidade em duas partes. De um modo geral, as pessoas ou acham que estão cem por cento certas, ou então se mostram indiferentes. (Esses dois tipos de pessoas são aquelas que ficam se arrastando lá embaixo da pelagem do coelho!) É como separar as cartas de um baralho, Sofia. Fazemos um montinho com as cartas pretas e outro com as vermelhas. De vez em quando, porém, aparece um curinga: uma carta que não é nem de copas, nem de paus, nem de outros, nem de espadas. Em Atenas, Sócrates era como um curinga: nem cem por cento seguro, nem indiferente. Ele sabia apenas que nada sabia, e isto o atormentava. Então tornou-se filósofo, isto é, alguém que não desiste, que busca incansavelmente chegar ao conhecimento.
Dizem que um dia um cidadão de Atenas perguntou ao oráculo de Delfos quem seria o homem mais inteligente de Atenas. O oráculo respondeu: Sócrates. Quando Sócrates ficou sabendo disso, admirou-se, para dizer o mínimo. (Acho mesmo é que ele deu boas gargalhadas, Sofia). Imediatamente foi até a cidade e procurou um homem que ele e outras pessoas consideravam muito inteligente. Mas quando viu que este homem não era capaz de responder claramente às suas perguntas, Sócrates entendeu que o oráculo tinha razão.
(...)

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia. (trad. João Azenha. Jr.) São Paulo: Cia. das Letras, 1995. pp.82-84.

* Sábios e retóricos gregos, contemporâneos de Sócrates, que vendiam seus ensinamentos filosóficos (prática condenada por muitos na época). (Larousse Cultural)


Isabel Rosete (investigação)

A Atitude Filosófica
Convite a Filosofia


«Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?.
Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?, “seja objetivo”, ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é belo?
Em vez de gritar “mentiroso”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê?
Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos?
Se, em lugar de discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?
E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possuiu as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é o valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade?
Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.
Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana: jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntara, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.»

CHAUÍ, Marilena. A atitude filosófica. In: Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997.


Isabel Rosete (investigação)

HEIDEGGER:
ARTE, OBRA, ORIGEM, MISTÉRIO E ENIGMA



«(...) E todo o meu sonho e intento é unir
e juntar num só todo o que é fragmento
e enigma e horrível acaso.
E como suportaria eu ser homem, se o
homem não fosse também poeta e decifrador
de enigmas e redentor do acaso?»
F. Nietzsche



«Holz lautet ein alter Name für Wald. Im Holz sind Wege,
die meist verwachsen jäh im Unbegangenen aufhören.
Sie heiben Holzwege.
Jeder verläuft gesondert, aber im selben Wald. Oft scheint
es, als gleiche einer dem anderen. Doch es scheint nur so.Holzmacher und Waldhüter kennen die Wege. Sie wissen, was es heibt, auf einem Holzweg zu sein».
[1]
M. Heidegger


I.

Partimos do texto Der Ursprung des Kunstwerkes, escrito por Heidegger em 1935/1936 no intuito de pensar, com o autor, a complexa problemática que gira em derredor da Arte, da obra, da origem e do enigma, ou por outras palavras, quisemos reflectir sobre a origem da obra de arte e o enigma que a arte é em si mesma.
Se Heidegger é o filósofo por nós eleito para apresentar e quiçá ilustrar estes pontos fundamentais de toda a compreensão onto-artística contemporânea, Van Gogh e as suas múltiplas versões do tema «Um Pares de Sapatos», a que Heidegger indiscriminadamente se refere sem a precisão adequada – o comentário do filósofo dos caminhos que enigmaticamente não conduzem a parte alguma, é tão generalista que se pode aplicar a qualquer uma das obras realizadas pelo artista, sobre este tema, em períodos diferentes – é o pintor escolhido, esse autor consagrado da “Grande Arte”, como meio de mostração do “pôr-em-obra da verdade”.
É esta a tese central do pensamento heideggeriano que coloca a verdade como categoria estética fundamental, ao destruir, por um lado, o império fugaz do Belo inteligível, universal, pelo qual se todas as coisas são belas são-no apenas porque nele participam, ou então, porque este é uma propriedade do objecto, ou porque reside no sujeito que põe por si mesmo a beleza na coisa contemplada; e, por outro, ao destronar o reinado da emoção, da experiência-vivida (Erlebnis) como características fundamentais da criação e da contemplação estética.
A Arte e a obra no seu dar-se primordial mantém-se sempre envolvida no enigmático mistério que é próprio do dar-se do Ser no espaço vazio da tela na partitura sem notas do compositor musical, na pedra informe do escultor ou no papel em branco do poeta.
Movendo interiormente o texto em estudo e a reflexão heideggeriana sobre a arte, está a convicção de que uma interpretação metafísica da obra de arte, longe de a esclarecer na sua essência e origem, antes a perverte na sua constitutiva realidade. Correlato da nossa postura filosófica ocidental, este tipo de perspectivação metafísica da arte, que o autor, aliás, sem suficiente problematização, identifica com Estética, procuraria fazer da arte uma manifestação cultural sem mais, sempre reconduzível ao homem, procurando dilucidar-lhe uma criteriologia que afinal mais não é, para Heidegger, do que a aplicação de valores de civilização, de padrões de auto-avaliação importados do saber teórico, que em nada esclarecem a essencial radicação da obra de arte, de todo descurando a sua fundamentação na problemática ontológica, verdadeiro nexo dinâmico da reflexão heideggeriana.
A Estética procura esclarecer as modalidades de patenteação e juízo do Belo, bem como a relação intrínseca e insuperável entre os termos autor – obra de arte – espectador, descentrando, deste modo, a reflexão da própria realidade da obra, e esquecendo a sua ancoração fundamental ao plano de fundo despoletador da existência da mesma. É assim que Heidegger afirma em Einführung in die Metaphysique: «Devemos dar ao termo ‘arte’ e àquilo que ela quer designar um novo conteúdo, em encontrando primeiro uma posição fundamental originária quanto ao Ser»[2].
O modo de apresentação da nossa investigação poderá sugerir que a tematização heideggeriana, enquanto procura relevar a temática ontológica necessariamente subjacente à questão da obra de arte, é, neste intuito mesmo, uma reflexão sem falhas.
Porém, adiante o veremos, a reflexão do filósofo sobre a essência da arte antes desemboca na impossibilidade de superar a mútua implicação metafísica. Permanecemos com o primado da questão ontológica, enquanto postura interpretativa, sendo a arte um dos horizontes de reflexão em que se repõe inevitavelmente a questão do homem e da sua proventualidade historial, esses dois termos que mais unidamente se imbricam.
Se Heidegger utiliza a sua própria reflexão sobre a arte como momento privilegiado da própria des-construção dos pontos nodais do seu pensar – questão do Ser e da diferença ontológica – parece-nos que tal abordagem não perde por isso a sua pertinência.
Se a questão da arte, e a da obra de arte, ela própria, perdem algo da sua autonomia e não são perspectivadas como absolutos, na sua postura pura e simples, é, por outro lado, patente, a relevância que o filósofo assigna à arte como momento instaurador, e à obra de arte como lugar de presentação dos dilemas insuperáveis da dinâmica do Ser, e como in-stância mostrante, quiçá mais do que qualquer outra, do referente enigmático da questão ontológica.
Mesmo enquanto momento lateral da reflexão de Heidegger sobre o Ser, e apontando justamente para ela, o texto que aqui comentamos não deixa, por isso, de ser extraordinariamente significativo. Se a arte perde, inevitavelmente, horizonte hermenêutico próprio, a sua relevância no pensar heideggeriano não é por isso menor.
Antes relevando a proximidade da questão da origem da arte e do seu carácter enigmático com a fonte originária e indizível do brotar do ser para a patenteação que se dá como a própria obra de arte, ao qewrein do homem, na sua postura a um tempo historial e de Dasein. Trata-se, pois, de relevar que enigma é esse que a arte acolhe.

II.

Se se procura descortinar a origem da obra de arte, a sua proveniência essencial, então o que indubitavelmente se persegue é o modo próprio de desdobramento do ser da obra enquanto ente (Seiend) que é.
Por sua vez, se a tríade obra de arte – artista – arte não torna a inquirição futurível, pois que inevitavelmente se recai em círculo vicioso, e nem a determinação da essência da arte é possível através da contemplação comparativa de distintas obras ou da dedução do que a arte seja a partir de conceitos superiores, inevitável é o procurar deslindar o que a obra de arte é na sua pura realidade.
Trata-se de procurar destilar as propriedades da obra de arte em relação aos outros entes, pois o horizonte em que primariamente a obra nos surge é o das coisas que são, havendo que relevar se a obra é coisa (Ding), se diz outra coisa além da coisa que é (allo agoreuei), e é então alegoria, ou se, sendo coisa, a ela está reunido, adstrito, algo de outro, caso em que a podemos caracterizar como símbolo.
Relevando agora a dimensão de tudo o que é de algum modo ‘aparente’, e fazendo-o procurando conectar os termos obra-coisa, num percurso que não vamos aqui pormenorizar, cedo a reflexão heideggeriana estabelece que o que na obra de arte se joga não cabe na caracterização tradicional do conceito de coisa em sua tríplice dimensão: enquanto suporte de qualidades marcantes, como unidade de uma multiplicidade sensível, ou, ainda, nessa concepção mais usual de coisa como matéria informada.
Se estas três determinações insultam a coisa mais do que a captam na sua ‘coisidade’, pois que não a apreendem na sua própria incontornabilidade, isto é, no facto de brotar originariamente para a patência a partir do ser, trata-se agora de enveredar por outro caminho e descortinar se o ser-coisa da obra pode apreender-se no ser do utensílio (Zeug), esse ente particularmente mais próximo do homem porquanto advém à patenteação por nossa própria produção.
Porém, a essência do produto, não reside na sua produção, aspecto pelo qual se assemelharia inevitavelmente à obra de arte, mas na sua utilidade, conferida pela sua solidez intrínseca, a sua ‘fiabilidade’ (Verlässlichkeit). O próprio do utensílio é ser fiável, poder contar-se com ele, assumi-lo como o ente‑à‑mão que é, disponível para o uso do homem. Transparece, pois, que a essência do utensílio não repousa no ser do mesmo mas na sua reportação à postura existencial do Dasein, enquanto ser-no-mundo.
Se a obra de arte por si própria tem suficiência, segue-se que a sua essência não é determinável a partir do ser do produto, sujeito à usura que lhe confere a submissão da sua essência às finalidades do homem. De facto: «A obra de arte, por esta presença bastando-se a ela-mesma que é o próprio da arte, assemelha-se mais à simples coisa repousando plenamente nesta espécie de gratuitidade que o seu brotar natural lhe confere. Todavia não classificamos as obras entre as simples coisas»[3].
Para evitar que a perspectivação do que seja a obra de arte, a partir da des-construção do conceito de coisa, constitua um insulto (Ueberfall) à obra, trata‑se de eliminar tudo o que susceptível de obstar a nossa acessibilidade à própria obra – incluídos os nossos enunciados sobre ela, e, primacialmente, fazer relevar a constitutiva in-stância da obra, abandonando-se à sua presença imediata (unverstelltes Anwesen).
Trata-se de silenciar o homem para deixar falar a obra: «Nada mais fizemos do que colocarmo-nos em presença do quadro de Van Gogh. Foi ele que falou. A proximidade da obra transportou-nos repentinamente para um outro lugar que o aí onde tínhamos o costume de estar»[4].
Vemos assim que o que pareceria constituir o nexo interpretativo conducente à determinação da origem da obra de arte – a abordagem da realidade ‘coisal’ da obra (das Dinghafte) – é substituído por outra perspectivação tendente a relevar o que está em obra na obra, ou seja, esta deixa de ser questionada na sua espessura ôntica para ser apresentada como topoz indiciador de outra presença, como in-stância mostrante.
Este salto, significará a eleição de um novo nó problemático que colocará a obra de arte em directa confrontação, não já com o seu estatuto de coisa, mas com a dimensão fundamental da verdade.
Se já aqui se adivinha o abandono de uma “hermenêutica metafísica” e a abertura de outros espaços de perspectivação, conexos com a noção de verdade, mais tarde veremos como o abandono da inquirição pela onticidade da obra e, por consequência, da sua propriedade e id-entidade, levantará, no seio da perspectivação heideggeriana a algumas dificuldades.
A resolução destas implicará, entre outros aspectos, a cessação da autonomia do sujeito e do processo de criação artísticos enquanto objectos de investigação, com o intento de pensar um novo conceito de arte que, livre de funções miméticas como expressivistas, e, por conseguinte, não mais adstrita ao real já dado como à “experiência-vivida” do sujeito (Erlebnis), se afirme antes como momento verdadeiramente instaurador e poético.
Mas o que é que se faz obra na obra? A verdade de todo o ente que é, coisa ou produto. O ser do que é chega pela obra e sobretudo por ela ao seu parecer: «A essência da arte seria pois: o pôr-se em obra da verdade do ente (Sich-ins-Werk-setzen des Wahreit des Seienden)»[5].
Esta assumpção da mostração da verdade pela obra de arte, surge na tematização heideggeriana segundo dois modelos interpretativos que podemos consignar nas duas díades: Mundo/Terra, clareira/retraimento. É, a um tempo, no enlaço e no hiato destes dois modelos que a concepção heideggeriana da arte ganha, na nossa perspectiva, a sua mais fecunda peculiaridade.
O que na obra se consigna e apresenta segundo a dicotomia Mundo/Terra está ainda na dimensão não-veladora da verdade heideggeriana. Em rigor, trata-se de perspectivar o que, estando em obra na obra tem relação ao humano, à sua estada na Terra e ao seu desbravar de um mundo, prerrogativa exclusiva do modo de ek-sistência do Dasein: «A Terra é o afluxo infatigável e incansável daquilo que está aí para nada. Sobre a Terra e nela, o homem historial funda a sua estada no mundo. Instalando um mundo a obra faz vir a Terra (Indem das Werk eine welt aufstellt, stellt es die Erde her)»[6].
Mas, o que é a Terra? Heidegger naturalmente a reporta ao termo grego jusiz, essa força que eclode e brota, qual seio de que a um tempo tudo se abre à presença. Fusiz é a Terra protectora, o solo natal (Grund) que tudo mantém e alberga em si. E o Mundo? «Um mundo ordena-se em Mundo (Welt weltet)»[7].
O Mundo é o que na Terra o homem instala e propria, privilégio da estada humana no aberto do ente. São estas duas modalidades de tudo o que é que a obra acolhe em si na sua in-stância (Dastehen), no seu stare, no seu ter-se aí, instalada. Instalar uma obra significa depô-la, erigi-la, oferecê-la ao espaço já constituído, enquanto instância que ordena a amplitude da estada do homem no seio da Terra. A obra é in-stância irradiante e provoca o abrir-se à luz (lichtet sich) de tudo o que em si consigna: ela erige um Mundo (Aufstellen einer Welt) e revela a Terra (Herstellen das Erde).
Poderíamos inquirir-nos, agora, pelo responsável de tal instalação da obra. Porém, o ‘sujeito’ instalador cedo se esvanece na tematização heideggeriana. A obra é sempre reportada à dimensão da mais pura impessoalidade, primando iniludivelmente o seu ser-obra e o que nela se patenteia enquanto presença mostrante: «Como pode a obra requerer uma tal instalação? Porque é ela mesma instalante no seu ser-obra. Que instala a obra enquanto obra? Quando a obra de arte em si mesma se põe, então abre-se um mundo, de que ela mantém para sempre o reino»[8].
Esse repouso que é a deposição, a oferenda da obra ao espaço já aberto da jusiz, não é um repouso sem máculas: no interior da obra, na medida em que erige um Mundo e faz vir a Terra, suscita-se um combate (Streit) entre estas duas instâncias: é na efectividade deste conflito que reside o ser-obra da obra.
É que, se o Mundo aspira à dominação, ele não pode contudo afastar-se da Terra, tal como o apolíneo não pode afastar-se do dionisíaco, pois que se funda sobre ela, qual templo deposto sobre a solidez do rochedo. E nem lhe é possível resvalar para esse fundo etónico que é a própria Terra, impenetrabilidade que o não acolhe. Por sua vez, esta, enquanto pujança e força sempre doadora, para brotar e ser autenticamente si-mesma não pode renunciar ao aberto do mundo e sempre colide com este espaço téctico – expressão a um tempo da expansão e fechamento sobre si. Mas: «Como se produz no ser-obra, isto é, agora, na efectividade do combate, o advento da verdade? O que é a verdade»[9].
É, de facto, nesta interrogação que ganhamos consciência que a tematização heideggeriana não atinge ainda aqui o seu intento fundamental, antes requerendo uma perspectivação que adiante à dicotomia Mundo/Terra outra mais radical, a saber, a que atine à essência da própria verdade como des-velamento (Unverborgenheit).
O combate Mundo/Terra é ainda metafísico, tem realidade no seio de tudo o que é, na abertura do ente, fazendo porém adivinhar um outro per-passante, mais originário e fundante. É certo que, sendo reserva no interior da clareira, a Terra é o que de mais ser há no ‘visível’ – porém, não é o autenticamente ser heideggeriano, antes remetendo para ele. Terra e Mundo são os dois ramos em que se bifurca a dimensão clareante da verdade, instância impessoal, que acolhe em si mesma um suspenso, sob o modo de uma dupla reserva: verdade é clareira e retraimento, luz e obnubilação.
Consignando em si o enlaço combativo destes dois termos, a obra faz advir em si a eclosão (Aufbruch) do ente no seu todo. «Mas como advém a verdade? Resposta: ela advém em alguns, raros, modos essenciais. Um dos modos nos quais a verdade se desdobra, é o ser-obra da obra»[10]. Indicia-se, pois, aqui, uma oposição suscitadora de um conflito ainda mais original do que o que retratámos à pouco.
É numa aproximação à questão fundamental do Ser e da diferença ontológica que a tematização heideggeriana irá conceber a obra de arte como acontecimento originário e a instauração da verdade na obra como momento radicalmente inaugural.

III.


Sabemos que o Ser, para Heidegger, é essa possibilidade ilimitada e sem figura, força sempre excessiva e em provisão, a partir da qual, como um fundo, brotam todos os entes. O que seja a capacidade do ser em se ondular, de se patentear através de diferentes texturas e rugosidades, é o que é extremamente difícil de delimitar no seio do pensar heideggeriano, carente da inicial diferença que, no começo de tudo o que é, despoletaria o ente para a existência (ao modo como, por exemplo, em Aristóteles, o ente brota na jusiz a partir da confluência, no mesmo, de ser e entidade, ulh e morjh).
É a capacidade auto-projectiva do Ser, a sua capacidade de jectar para a patenteação tudo o que é, e o homem de modo mais insigne, que permanece sobretudo enigmático. Em suma, é o ‘aparecer’ do lugar de todos os mistérios.
Em vários textos[11], Heidegger apresenta dois sentidos do aparecer que diferem entre si a partir da essência do espaço. Num primeiro caso o trazer-se do ente-à-stância-na-recolecção que abre o espaço, conquista-o e cria-o no seu re-es-tando-aí, no seu constituir-se desse modo, efectuando, nisso, o seu recurso máximo para brotar para a patência sem ser ele mesmo cópia de algo já existente.
Também, num segundo sentido, o aparecer separar-se-ia apenas sobre um espaço já constituído, sendo visado por um olhar que se move nas dimensões, já solidamente estabelecidas, desse espaço. Agora, é o viso que faz a coisa o mais decisivo, e não a coisa ela mesma. Este aparecer não é, pois, senão um governo do espaço assim aberto, e sua mensuração, e não mais um acontecimento originário, um aparecer genuíno e inicial.
A aportação destas duas concepções de ‘aparecer’ para um estudo sobre a concepção heideggeriana da arte, parece-nos fundamental, tanto mais quando se trata de apresentar a obra como modo de patenteação da verdade.
Parece que a adveniência da verdade, só teria sentido na primeira acepção apontada do aparecer, sendo, deste modo, concomitante originária ao brotar do ente. Assim sendo, jamais poderia ter conexão alguma com a postura da obra de arte já que, ao que parece, esta, na sua constituição e instalação, radicaria na segunda concepção de ‘ aparecer’ surgindo num espaço já constituído, e em que a dimensão do seu viso seria manifestamente mais relevante que a sua própria efectividade.
A obra de arte, lugar de irradiação e fulguração, teria pois o seu significado enquanto determinante de um sentido do Mundo no já aberto da Terra, mas perderia toda a relevância enquanto in-stância da mostração da verdade.
Pensar a instituição da verdade na obra, tendo como núcleo de reflexão, a um tempo, a instalação da obra no espaço do mundo e o brotar de um ente, desbravando e constituindo o seu próprio lugar e espaço é o que Heidegger levanta como dificuldade no Suplemento a Der Ursprung des Kunstwerkes, escrito em 1960.
A dificuldade essencial consiste na conciliação de duas expressões: «constituir a verdade» (Feststellen der wahreit) e «deixar advir a chegada da verdade» (Geschehenlassen der Ankunft von Wahrheit) Sem explicitarmos este ponto será difícil compreendermos na totalidade a afirmação heideggeriana de que «A obra de arte abre a seu modo o ser do ente. A abertura, isto é, a disclosão, ou seja, a verdade do ente, advêm na obra. Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em obra.
A arte é o pôr-se em obra da verdade»[12]. Em que medida a duplicidade inerente à verdade do ente se faz apresentar na obra, por que meio esta última, por si própria, institui a própria cesura no seio do ente, abrindo desse modo o ser que lhe cabe, e, finalmente, como é que a abertura – disclosão do ente, mais que este último na sua simples postura, se faz ergog pela obra, e nela, é o que se trata de dilucidar preliminarmente.

IV.

Assim, consideremos o ente X: um par de sapatos de camponês e os quadros de Van Gogh sobre esta temática. Como podem estes últimos mostrar a verdade do ente em questão se, de acordo com o que acima apresentámos sobre o aparecer e o espaço, os dois se colocam na mais radical heterogeneidade?
A verdade do referido ente X está no topoz do seu brotar, isto é, no nó que co-lige o não-ainda-eclodido e o aberto no qual vai ter-se o ente. É no desenlaço desse laço que reside a verdade; é no brotar originário do ente para a patenteação que a verdade se mostra, na sua dicotomia constitutiva: ser a descoberto /ser na defensiva, clareira/retraimento.
Os quadros de Van Gogh, se, na concepção heideggeriana, mostram a verdade do ente X, então, em rigor, não o imitam ou copiam, na medida em que, fazê-lo, é, tão-só, o dar a ver o viso do ente em questão no seu ter-se aí, re-produzi-lo, e não deslaçar-se a verdade.
O que acontece é algo de manifestamente diverso: a estância da obra, redutível, para Heidegger, ao que nela está em obra e, portanto, ao seu ‘conteúdo’, cruza apofanticamente o (brotar do) ente, dando-o a ver, mostrando a sua verdade. A obra é ao modo do logoz apofântico.
A sua criação é uma poihsiz, um fazer que mostra, um ‘tirar para a luz’ ou extrair para a patenteação, mostrando o que é fora do retraimento: «Porque pertence à essência da verdade o instituir-se no ente para, apenas deste modo devir verdade, há na essência da verdade esta atracção para a obra enquanto possibilidade insigne para a verdade de ter ela-mesma ser no meio do ente»[13].
A verdade quer dar-se em obra, a verdade dos sapatos de camponês quer vir à patência na tela de Van Gogh. A essência da verdade tem uma atracção para a obra (Zug sum werk) porque, tendo instância nela, tem mais ser no seio do ente. Deste modo, a densidade ontológica da obra está insuperavelmente unida com a espessura ôntica da verdade.
Como não pensar no facto, irrenunciável, de que a obra é um ente no mundo, e tem, como tal, a sua facticidade própria? Afinal, trata-se de inquirir: a verdade dá-se à patenteação na obra, mas qual a verdade própria da obra? Não a tem? Ou dá-se noutra obra? E a verdade desta? O questionar iria então ao infinito e o universo seria um espaço pejado de obras de arte mostrando as verdades umas das outras.
Se a verdade se dá em ente, e se mostra na obra, não pode ser desprezada a onticidade desta última: «A verdade não advém senão se se institui ela-mesma no combate e no espaço de jogo que se abrem por ela. (...) é a abertura do ente, ela apenas, que torna possível um ‘qualquer parte’ e um ‘lugar cheio de ente’. Clareira de abertura e instituição no aberto pertencem-se reciprocamente»[14]. Iniludivelmente, a obra não se limita a instalar-se, de pôr-se no seio de um Mundo, qual oferenda ao aberto do Ser.
A obra ‘(a)tira-se’ para o espaço, rompe para a patenteação e provoca a sua própria abertura. Nisto, ela abre o seu espaço e institui-se no seu próprio topoz sem que estes dois movimentos surjam como distintos e com diferentes tempos. Na realidade, ambos se efectivam no mesmo instante do brotar da obra enquanto ente em que a verdade ganha a entidade que se aduz à sua essência mesma: o ser fissura, diferença, obnubilação e luz. Mais do que propriar o espaço, a obra de arte concede-se o seu próprio fundo, ocupando como ente a abertura que o seu vir à presença denuncia.
A obra de arte consigna em si a dúplice concepção do aparecer e do espaço heideggerianos: instalando-se no aberto e irradiando a sua luminosidade para o mundo, acolhe em si a verdade do ente, porquanto o conflito inerente à instância desta nela está em ergon. Nunca o que constitui o mistério na díade ser-ente, isto é: alhqeia, des-velamento, está tão perto da sua mais efectiva e espontânea patenteação como obra de arte.
É na confluência dos termos da diferença inerente à essência da verdade que nos parece ser possível afirmar a necessidade de conhecer a tematização heideggeriana da obra de arte com outra nuance: é na confluência do instalar-se da obra no espaço com esse inefável dar-se, na obra e da verdade do ente que brota, na nossa perspectiva, a arte como momento fulcral de instauração.
Na medida em que é ente e colhe em si, mostrando, clareira e retraimento que a obra está no topoz da diferença ontológica: de facto, se neste ponto fulcral do seu pensar, Heidegger se questiona sobre a diferença fundamental entre ser e ente, e sobre a efectividade do esquecimento desta questão como motivo despoletador da postura metafísica, como não revelar a assumpção desta temática para a concepção de obra de arte, esse ente que na sua in-stância mesma sincretiza esses dois elementos: ôntico e ontológico?
Se o acto criador é a um tempo uma qesiz ‑ o deixar desdobrar-se na sua fulguração e na sua presença a própria obra, e se esta é o lugar em que qualquer coisa é tirada ao ser para ter mais ser no seio do ente, a saber, a verdade, então, o dar-se da verdade na obra, conecta indubitavelmente uma hermenêutica da arte com a problemática moral do pensamento heideggeriano: «Se meditarmos em que medida ‘verdade’, como eclosão do ente, não quer dizer nada de diferente de presença do ente enquanto tal, isto é ser, então falar da instituição espontânea da verdade, isto é, do ser, no ente, este falar toca a posição em questão da diferença ontológica»[15].
Há que relevar esta dupla compreensão da obra de arte. Perspectivada sob o ponto de vista de tudo o que é de algum modo já-presente no seio da dimensão não velada da verdade e, portanto, mostrando a verdade de todo o ente na sua própria facticidade no seio da dicotomia Mundo/Terra, a obra de arte assume-se como instância mostrante do ser da coisa e do utensílio, e o conceito de instalação surge-nos como mais relevante.
Apenas a perspectivação da arte como instauração, numa abordagem que releve o próprio nó de todo o eclodir – a confluência de clareira e re-traimento na abertura de todo o “brotar ente”, nos fornece uma mostração da verdade própria da obra, porquanto a releva nisso de ser a um tempo instância mostrante e ente que se instaura no topoz da sua própria abertura.
A instauração da obra é concomitantemente o momento inicial de todo o ente, e, como tal o seu surgir é um acontecimento verdadeiramente inaugural, sendo a obra pensada a partir dessa fulguração indizível que é o facto da verdade se dar, se pôr em ergon, na obra de arte mesma.

V.

Preparados estamos para compreender o esvanecimento das categorias de autor e criação no seio da tematização heideggeriana. Numa concepção da obra em que é a verdade mesma que se atrai para o espaço télico, na pintura, para a sonoridade, na música, ou para a palavra, na poesia, o processo como o sujeito realizador de tal assumpção, que entifica o próprio querer dar-se da verdade, surge como que irrelevante mediador, descaracterizado enquanto instância produtora e apenas como simples, mas evanescente, meio para o surgir da obra.
Mas se Heidegger nos fala da assumpção da obra como um “tirar para fora” da verdade em relação ao fundo não patente, como não desprezar essa pergunta que se inquire pelo quem e como deste extrair, ainda que como instâncias que, num primeiro momento, abrem a própria possibilidade da adveniência da verdade para, no dar-se excessivo desta, logo se emudecerem e desvanecerem, deixando-se tomar e ultrapassar por aquilo que está em obra na obra, mas também perante o brotar denso e vigorante da obra na sua espessura ôntica: «A obra de arte como o obreiro – o artista – repousam ‘juntos’ naquilo que se desdobra na arte»[16].
É a essência mesma da obra que torna possível o processo como o sujeito da criação artística, embora estes sejam ‘nadificados’ na sua instância e essência própria, no intuito de relevar o modo como a obra surge, sem mediação, num brotar depurado que desafia toda a compreensão.
Não é no processo de criação que o elemento humano ganha a sua relevância na tematização heideggeriana. A importância quase exclusiva atribuída à temática ontológica provoca, nesta perspectivação, uma radical separação entre a criação e o homem com a finalidade de relevar a postura da obra como topoz de um advir que nada tem de humano: «A obra quer chegar pelas suas mãos à sua imanência pura. Na grande arte, e é a grande arte apenas que faz aqui questão, o artista permanece, por relação à obra, qualquer coisa de indiferença, um pouco como se ele fosse uma passagem para o nascimento da obra, que se negaria ele-mesmo na criação»[17].
“Criar” (Schaffen) significa, para Heidegger, ‘tirar à fonte’, receber. Não é pois, o acto criador, um fazer a partir do dado, uma modelação, um construir que exprime e seja, como tal, caracterizador de um sujeito que pela obra se manifesta. “Criar” é um saber estar junto da fonte de onde tudo brota, do lugar do originário. O ‘criador’ é o Dasein que sabe ter-se na instância do acolhimento, que recebe para a obra a dádiva da verdade que nela se pre-senteia. No mais, a pro-dução, se é sempre um trazer ao visível, ao manifesto, é sempre o fazer que provoca a assumpção de um ente.
Na arte, o que releva de modo mais insigne, não é a produção de um ente mas o facto incontornável de que a verdade se dá em acto. Nisto o criador é tão só um poro, uma passagem, em que a própria individualidade e entidade do sujeito, porque não é o que na obra se trata de expressar, recai na própria aporia, isto é, a obra não se abre ao ser do homem, mas ao ser da verdade. A arte é uma instauração antropologicamente inexpressiva no que concerne à criação da obra.
Se, assentámo-lo já, na obra se re-colhem umbilicalmente ente e verdade, trata-se agora de perguntar pela especificidade da arte enquanto modo de mostração daqueles relativamente a outras modalidades de patenteação, consignadas no pensar heideggeriano. De facto, em que consiste a propriedade da arte? O que faz a originalidade da obra de arte? Heidegger afirma: «A instituição da verdade na obra, é a produção de um ente que não era de modo nenhum antes, e não será mais a seguir. A produção instala este ente no aberto de tal maneira que é precisamente aqui o que é a produzir que aclara a abertura da obra na qual ele advém. Aí onde a produção traz expressamente a abertura do ente – a verdade –, aquilo que é produzido é uma obra. Uma tal produção, nós chamamos-lhe criação (das Schaffen)»[18].
A realidade própria da obra é ser um ente que, acolhendo em si a verdade na sua estatura, tem toda a sua positividade e pregnância no facto de ser tão o ente que é. Criar é produzir um ente que não tinha ser, e não terá nunca mais ser do que o que detém no momento em que vem à clareira do aberto. Se a verdade ganha mais ser no seio do ente, a obra afirma a sua especificidade e id-entidade no facto de ser o ente ‘insólito’ e enigmático, que acolhe em si a dádiva da verdade mostrando-se através dele.
Neste sentido, a obra de arte é aquele ente cuja postura e viso provocam espanto. Enquanto ente em que a verdade se dá, ela está perto do inicial, da origem de tudo o que é patenteado nela, sendo a sua adveniência mesma o próprio apelo do in-habitual.
Face ao que está em obra na obra tudo o que é ente sem ser mais do que ente cai na familiaridade que nada desafia, no habitual que não alude à sua própria origem. A obra tem, pois uma função ‘qauma-tica’, ela é um apelo para o maximamente inicial, sendo o seu surgir como que o concomitante do genuinamente original. ‘Ser-obra’, mais do que ‘verdade tendo ser no seio do ente’, eis o que é o mais espantoso: «O choque que é o pôr em obra da verdade, faz saltar as portas da e-normidade e no mesmo golpe rebate o familiar, ou tudo aquilo que se crê tal. A verdade abrindo-se na obra não é jamais atestável nem dedutível a partir do ente até ao presente já-posto, que se vê, então, refutado, desmentido pela obra, quanto à exclusividade da realidade. Aquilo que é instaurado pela obra não pode jamais ser contrabalançado nem compensado pelo dado habitual e disponível. A instauração é um acréscimo: ela é dom»[19].
A obra de arte é o lugar em que se instaura e concede um excesso. Na sua in-stância ela denuncia o que está para lá de tudo o que é, e justificando-o. Há algo de pre-valecente que se dá no ente, porém excedendo-o infinitamente. E se, nisto, ela faz denotar a vanidade do familiar, ela mostra, também, que o ‘ser-obra’ que é ‘nega’ o seu carácter de ser ente. O que aparentemente mais aproximaria a arte do homem: a produção do ente é o que a obra mesma supera pelo seu estar-aí apelando o in-habitual. A realidade da obra desvanece-se perante a dádiva que a sua instauração mesma constitui: o que denota a verdade da obra é o que ela precisamente não é enquanto ente: é excedência, é dom – o dom que é a verdade pondo-se ela mesma em obra.
A demanda heideggeriana não se queda numa apologia da obra como dádiva, relevando também questões de outro cariz, conexas com a problemática radical da questão ontológica. Temos pois a assumpção da pergunta pelo fundamento da obra, não numa perspectiva tendente a encontrar-lhe o porquê e a razão, relevando antes o horizonte em que, no surgir da obra, se coligem, no mesmo traço caracterizador, fundo (Grund) e fundação, a própria obra de arte aparecendo como acontecimento verdadeiramente auto-fundador: a obra é expressão de um salto original que a traz do nada ao ser.
A fundação é, a um tempo, a circunscrição de um espaço de instauração, do assento num fundo, e os próprios pilares que enraízam o ente ao seu fundo de ser. Enquanto instauradora de um espaço que propria a assumpção da verdade no ente, a obra é simultaneamente instância fundante e fundação: ela traz a verdade ao ente e constitui o lastro, o estame que a radica ao seu fundo de ser. Consignando estas duas dimensões, a obra surge de um inexplicável ‘salto’ que faz brotar a própria verdade como que se adiantando ao próprio ente, como se provocasse a estatura da verdade no ente sem que este mesmo surgisse desdobrando a sua própria verdade.
Nisto, a arte é quase o paradoxo, como se promovesse a dádiva da verdade sem a oferecer num ente, dando a vê-la como sendo o seu próprio fundo: «A arte faz brotar a verdade. De um só salto que se adianta a arte faz surgir, na obra, enquanto salvaguarda instauradora, a verdade do ente. Fazer surgir qualquer coisa com um salto que precede (etwaserspringen), trazê-la ao ser a partir da proveniência essencial e num salto instaurador, eis aquilo que nos assinala a palavra origem»[20].
Fornecendo solo à verdade e trazendo-a à estância a obra de arte é acontecimento verdadeiramente inaugural. Ela é concomitante do genuinamente inicial (Anfang). O advir da obra é coetâneo do salto que traz o que é ao ser sem mediação.
O inicial é aquilo que, estando no princípio e provocando-o não deixa de nos apelar e fascinar, porquanto continua per-passando tudo o que é. O inicial é o in-habitual de aquilo que sempre prevalece suscitando o devir de todo o ente familiar e o anima. A obra, instauração do inicial, promove a adveniência da origem, aquilo que nos con-voca e pro-voca a resposta e a co-respondência.
A obra de arte faz um apelo, des-ilude o habitual e o familiar como absolutos, mostrando que não são eles que detêm mais ser: «Aquilo que nos parece habitual não é verdadeiramente senão o habitual de um longo hábito que esqueceu o in-habitual de onde brotou. Esse in-habitual, no entanto, surpreendeu um dia o homem em estranheza, e empenhou o pensamento no seu primeiro espanto»[21].

VI.

A obra de arte é, nesta configuração, o ente da existência metafísica que clama de novo resposta ao espanto originário. É neste sentido que Heidegger pode afirmar a sua concepção da arte como origem, radicando de modo, insigne, pelo qual a verdade tem acesso ao manifesto e à história, a essência mesma da arte. Coetânea desta adveniência da verdade, a arte tem também, porém não só ela, essa dimensão fundamental segundo a qual é, eminentemente um ‘mostrante’, um poema (Dichtung).
Capacitada para se ‘jectar’ na patenteação, no manifesto, ela é pro-jecto de clareira, despoletadora da própria abertura em que o ente se dá na sua verdade. Nisso de fazer vir ao aberto o ente enquanto ente des-velado, a arte é Poesia, um fazer mostrante que dilucida o modo como o ser possibilita um jectar’ para o manifesto, de acordo com o qual o aberto da verdade se destina a ter estância no ente.
Porquanto, a um tempo, acolhe a dádiva da verdade posta em ente e explicita o salto enigmático do ser ao ente, a obra está no topoz da diferença ontológica e da fundação de tudo o que é. Finalmente, na medida em que é concomitante ao originário advento da verdade do ser e faz apelo para ele, a obra de arte ganha o seu lugar entre os entes mais ‘mostrantes’ da existência metafísica.
A arte é Poesia e, nisso, mostra, a quem o faz? Qual o ente que se demanda pelo porquê de tudo assim ser, e acolhe essa mostração como detendo um sentido? Heidegger diz-nos: «A essência da arte, é o Poema. A essência do Poema é a instauração da verdade. Esta instauração, tomamo-la aqui num triplo sentido: como dom, como fundação e como inicial»[22].
Conquanto nos tenhamos movido numa perspectivação ontológica, o que até agora foi exposto parece suficiente, porém, a própria assumpção da arte como Poesia, como ‘fazer mostrante’, cedo mostra a necessidade de acolher, no questionamento heideggeriano sobre a arte, a temática antropológica, e a condução da abordagem ontológica a essoutra, não menos fundamental, da postura metafísica do Dasein e da inquirição deste sobre o sentido do ser.
É que, numa tematização da arte a partir dos conceitos de ‘instauração’ e ‘poesia’ a noção de ‘ criação-adveniência’ da obra, relevada tão somente na sua dimensão ontológica é manifestamente insuficiente. Há, pois, que relevar outra interpretação que sobreleve a figura do homem e o seu próprio estar metafísico: «No entanto, toda a instauração não é real senão na salvaguarda. Assim, a cada modo de instauração, corresponde um modo de salvaguardar»[23].
O que agora vamos tematizar, sobre a relevância do homem na concepção heideggeriana da arte vai, por assim dizer, inter-seccionar o que atrás dissemos sobre o pano de fundo de uma perspectivação ontológica, havendo que representar nesse espaço comum dos dois círculos inter-seccionados, respectivamente, as posturas ontológica e metafísica. Apenas desse modo se torna possível compreender a arte como instauração na sua tríplice dimensão de dom, fundação e inicial.
Se, por um lado, temos que é iniludível, para o filósofo, o facto de que o homem, enquanto artista, não explica a obra na sua radicalidade, porquanto a iniciativa do ‘fazer-obra’ pertence à verdade, temos, por outro lado, que a própria assumpção desta última como des-velamento só se torna compreensível numa postura em que há Dasein, esse ente para quem a verdade faz sentido.
Há uma inicial concepção que deve ser, dir-se-ia, superada, a saber, a que coloca como categoria mais elevada de compreensão da arte, a autonomia da obra em relação ao próprio horizonte do humano, ou, como diz Heidegger: «Não é o N. N. fecit que quer ser trazido ao conhecimento de todos; é o simples factum est que quer ser mantido no aberto; isto: que aqui adveio uma eclosão do ente, e que ela advém ainda, precisamente enquanto que este ser-advindo; isto: que uma tal obra é, de preferência a não ser. Este choque: que a obra seja uma obra, e a incessância da sua percussão dão à obra a constância do seu repouso em si mesma. É justamente aí onde o artista, o processo e as circunstâncias da génese da obra permanecem desconhecidas, que este choque, que este quod do ser-criado ressalta o mais puramente da obra»[24].
Se, na origem, o humano se desvanece, a própria instauração da obra no aberto não pode separar-se desse ente que, perante a sua instância, sente o ‘choque’ e a ‘percussão’ que dela emana. Instauração no seio do aberto e relevância da questão ontológica, sem dúvida. Porém, se ser obra é ser um ente mostrante, a relevância da sua dimensão poética só se torna possível se, aduzido ao momento instaurador, se coloca esse outro em que o Dasein, enquanto ente que mais insignemente acolhe o ser, se inquire pelo seu sentido, é iniludível que a arte na sua essência, na sua origem, é instauração da verdade.
A essência da Dichtung, da Poesia, não se esgota nesse momento originário, qual referente de uma concepção ontológica nova, mas antes suscita, e de modo não menos relevante, um novo modelo interpretativo do ente na sua totalidade. E se, de facto, a dimensão antropológica não é relevante na assumpção instauradora que conecta a obra ao fundo originário do ser, ela conquista toda a sua pregnância numa dimensão, dir-se-ia, hermenêutica, que reganha a obra para o aberto do mundo e para a dimensão historial do Dasein, configurando uma nova poética, antropologicamente mais positiva, que releva não já a dimensão da criação mas a da Salvaguarda (die Bewahrung).

VII.

Em que consiste a Salvaguarda, esse segundo elemento essencial da arte? Podemos dizer que por tal conceito se traduz o trabalho humano de deixar a obra ser o que em verdade é. Guardar a obra é o saber permanecer na verdade do ente que advém pela obra. Podemos dizer que está no poder da obra trazer ao aberto do ser a verdade do ente, mas não está no seu poder intrínseco manter-se no seu próprio elemento. Instalando-se no Mundo de cujos entes instaura a verdade, a obra tem a sua ambiência particular, ela própria o seu mundo, e fá-lo justamente na medida em que irradia para ele, como se, paralelizando com a atracção da verdade para a obra, houvesse um querer segundo, pelo qual a obra se posiciona como o mostrante do segmento do mundo em que se instaura, ganhando no seio dele a sua verdade própria.
‘Guardar a obra’ – eis a postura do Dasein pela qual ele pressente que, inerente ao instituir-se da obra num mundo, e ao abrir-se e ordenar-se de um mundo na obra, há, também, o mundo próprio da obra, qual periferia em que está no seu elemento próprio.
Tudo se passa como se houvesse, subjacente à noção de salvaguarda, uma ética do homem relativamente ao ser-obra, mediante a qual promover o desgarramento da obra ao seu mundo não é outra coisa senão insultá-la, pois que não se trata, aí, senão de abandoná-la à sua própria solidão de ser uma obra sem mundo – isto é, retirá-la do fundo em que foi deposta, fundo que é a sua própria proveniência historial, lugar em que a obra brotou para a existência manifesta.
Caricaturando: depor a Vénus de Milo nos átrios da Tate Gallery, é retirá-la do fundo grego em que surgiu para instalá-la num lugar que, muito distante do seu brotar, está todavia consignado no espaço metafísico ocidental, que a aurora filosófica grega despoletou, estando portanto no seio de uma mesma proveniência historial.
Verdadeiro insulto e traição à obra, seria antes para Heidegger o facto, bem actual, de exportar telas de Cézanne para o Japão, não porque haja aí apenas um ‘abismo espacial’ mas porque, de facto, um japonês não pode ‘sentir’ «La Montagne de Sainte-Victoire» como a sente um europeu que, enquanto Dasein ocidental, detém a mesma proveniência historial que a mencionada tela e pode ‘sentir’, por isso, a nostalgia do in-habitual que ela anuncia. Ao homem desgarrado da postura metafísica ocidental será impossível ‘guardar um hino de Hölderlin como uma sinfonia de Beethoven, e isto porque, não se tendo na verdade que tais obras desdobram, a instituem no espaço próprio de tais mundividências, e como tal, desenraízam de tal modo a obra que esta não pode mostrar o verdadeiro inicial e in-habitual de onde brotou.
Desenraizar a obra do seu mundo, eis em que consiste roubar-lhe a poesia: «Enquanto posição em obra da verdade, a arte é Poema. E é não apenas a criação, mas também a guarda da obra que é no seu modo próprio, poemática; pois uma obra não permanece real enquanto obra senão se nos demitirmos nós mesmos da nossa banalidade ordinária e entrarmos naquilo que a obra abriu, para assim conduzir a nossa essência a ter-se na verdade do ente»[25].
Manifesta é a assumpção do homem enquanto ente que, no fulgor da obra, se transporta para uma nova ordem de todo distinta da que configura a sua existência quotidiana. A obra é também uma via, um poro, no qual o homem se en-via para a co-respondência de aquilo que a própria obra abriu, a saber, a mesma fonte matricial onde se re-conhecem a origem da obra e a essência do homem.
A relevância da obra como mostração poética ganha a sua concretude no conluio, em uma mesma matriz, do homem e da obra enquanto mostração da verdade do ente. Só uma tal co-respondência num momento originário torna possível ao Dasein, o re-conhecimento de aquilo que, na obra, o concerne a si e ao sentido que confere ao seu existir historial: «O projecto verdadeiramente poemático é a abertura de aquilo em que o Dasein está, enquanto historial, já arriscado»[26].
Irradiação mostrante de um mundo que desdobra a sua ordem a partir da relação do Dasein ao aberto do Ser, mas também ente capaz de possibilitar o total desgarramento do homem em relação ao que lhe é familiar e habitual, transportando-o para um outro aí que não aquele em que tem o costume de estar, a saber, para o topoz originário, em que ele mesmo devém ser-aí, eis como podemos caracterizar a poética da obra de arte. A postura da obra mostra ao Dasein que o verdadeiro enigma se esconde por detrás do familiar que o circum-domina.
Apenas o homem é capaz desse saber segundo o qual lhe é manifesto que não deve ser esse habitual a pre-dominá-lo, detendo também esse querer que o torna capaz de ser fiel guarda da obra nisso de, perante ela, ser capaz de se libertar dos empreendimentos quotidianos no seio do ente para se abandonar à abertura do ser: «O saber que permanece um querer, e o querer que sabe permanecer um saber, é o comprometimento ek-stático do homem existindo no aberto do ser»[27].
Manifestamente, a obra, por sua imanência pura, existe no manifesto do ser mostrando-o, porém, ente que é, mas sem capacidade de se auto-questionar, ela não detém o poder de se comprometer na abertura do Ser, inquirindo pelo seu sentir. Assim, a obra de arte dá-se ao único ente ao qual não é indiferente o ser que detém e é, como tal, capaz de levar no seio do aberto uma ek-sistência autêntica: o homem.
Decorrendo do que temos vindo a expor, é manifesto que a tematização heideggeriana não acolhe a possibilidade do que poderíamos chamar uma ‘hermenêutica criativa’, privilegiante de um paqoz estético.
O choque que provoca a existência mesma da obra não é desencadeado por um viso desta que, pela sua força, provocaria prazer ou outra qualquer emoção. Não é, de facto, aí, que reside para Heidegger, a verdade da experiência estética, sendo esta negada se assumida numa dimensão que exclusivamente a reconduza à aisqhsiz.
Parece-nos, que se não é dessa aproximação sensível à obra que provém o poder desgarrante e ‘qauma-tico’ desta, não deixa o filósofo de conceber uma certa ‘disponibilidade receptiva’ que poderíamos assemelhar a um acto de escuta, numa ressonância que aproxima a poética da obra a essa outra, de todas a mais mostrante, residente no poder nominativo da palavra.
A postura do Da-sein perante a obra – e o combate que se trava nela entre clareira e retraimento, é um estar co-respondendo ao que na obra silenciosamente se diz, não porque a obra ‘fale’, mas porque o homem incontornavelmente lhe acolhe o apelo, apelo que não o do ente-obra mesmo, mas do que nele se oferece: o brotar longínquo do ente que a obra de arte dá a ver.
Detentor do poder da palavra, esse meio conivente do ser de cada ente, o homem é perante a obra desenraizado da marca quotidiana do ente, para, numa espécie de nostalgia, sentir a dor que lhe provoca a proximidade desse longínquo: o ser que o ser-obra enquanto tal lhe revela.
Querer e saber, eis as características do homem enquanto ente disponível para escuta da obra enquanto instância em que o ser apela: «Querer, é com toda a sobriedade o pôr em liberdade que possibilita ir para lá de si mesmo em existindo e em se expondo à abertura do ente tal como esta se manifesta na obra. (...) A salvaguarda da obra é, enquanto saber, a calma e lúcida instância na e-normidade da verdade advindo na obra»[28].
A obra de arte é lugar em que se potencia o acto de transcensão do humano em relação ao familiar e habitual na prossecução de uma verdade mais primeira. Conceder a própria possibilidade de excedência em relação à sua vida interior, na via do horizonte em que o homem co-responde mais ao seu ser, a saber, à verdade, eis a dádiva principal que a obra de arte concede ao Dasein.

VIII.

A necessidade de tematizar numa mesma conivência uma ontologia da obra de arte e a sua ‘significação hermenêutica’ conduziu-nos, neste nosso percurso, à dilucidação da questão da instauração poética da verdade e do trabalho humano de salvaguarda, enquanto momentos característicos da concepção heideggeriana da obra de arte.
O facto, incontornável no pensamento do filósofo, de que o Ser é assignação e direcção ao homem na mesma medida em que o homem ele próprio é um ‘projecto’ do Ser e o seu mais inacabado dos poemas, faz-nos relevar o coligimento da tematização ontológica e antropológica na concepção da obra de arte na sua mesmesura, com essa outra que atine à salvaguarda da mesma pelo Da-sein.
Assim, a pergunta que demanda: a tematização heideggeriana da arte tem como nexo dinâmico o homem ou o Ser? Terá de ter resposta algo dúbia e inexplícita, no seio do próprio texto de Heidegger: se respondemos a favor do homem, teremos que a concepção do filósofo não poderá descurar a metafísica, se bem que atentando também ao originário de onde esta brota enquanto postura historial da nossa ek-sistência ocidental; se nos decidirmos exclusivamente pelo Ser então a determinação da arte redundará inevitavelmente na questão fulcral da ontologia: o que é o Ser? E enredar-se-á nela a ponto de se tornar aporética, porquanto, descurando o homem, e a metafísica em que este habita, perguntar-se-á: como explicar o processo historial de salvaguarda da arte, sem um Dasein que o cumpra e explicite?
O termo ‘historial’, relevado por nós a propósito desta dúplice possibilidade, parece-nos fundamental, fazendo brotar uma questão necessariamente subsequente: que relação entre verdade e dimensão historial? Ou seja: «O que resta é a questão de saber se a arte é ainda, ou se não o é mais, uma maneira essencial e necessária de advento da verdade que decida do nosso Dasein historial»[29].
O que no questionar de Heidegger nos parece mais aporético, e justamente na proporção em que é uma temática fulcral, reside na dificuldade em explicitar de que modo o homem enquanto ente historial que, como tal, salvaguarda, pode estar também sempre perto da fonte, isto é, da matriz grega do despoletar possibilitador da metafísica enquanto postura indagante.
Trata-se de inquirir os meios pelos quais se viabiliza a conciliação da historicidade da Arte com uma concepção que a tematiza em concomitância com a originária jusiz, enquanto predominância que advém ao manifesto através do conflito entre Ser e ente, isto é, pela matriz grega da verdade como alhqeia, des-velamento, num regredir ao momento originário que permanece per-passando tudo o que é e devém, relevando aí, a própria postura metafísica. Qual a temporalidade que revém no ser estético? Como a conciliar com a atemporalidade do que está em obra na obra? Trata-se de relevar qual a relação possível entre a intemporalidade da verdade dando-se na obra e a historicidade da salvaguarda: «A arte é então: a salvaguarda criando a verdade na obra. A arte é pois um devir e um advir da verdade»[30].
Não é um facto que, concebendo uma verdade que devém pela sua própria salvaguarda, há uma imbricação necessária, porém inexplícita, entre as tematizações ontológica e metafísica no que concerne a tal noção? Não é precisamente o acolher metafísico da Arte que se quer negar, superando-o numa concepção da arte que a reconduz ao originário longínquo que despoleta toda a herança metafísica, mas que porém não é só e nem primordialmente metafísico na sua origem? Não é de certo modo paradoxal afirmar: «Mesmo o esquecimento no qual pode soçobrar uma obra não é nada: ele é ele-mesmo ainda uma salvaguarda»[31]? Como, este poder conceber uma salvaguarda esquecida no próprio esquecimento do Ser que é já a metafísica? Não haverá, em Heidegger, o perigo de recair numa certa interpretação metafísica da Arte, quando é precisamente o conceito metafísico desta que se trata de superar, pensando a essência da Arte como apontando para uma outra ordem, ontológica, que se demanda pelo ser ainda virgem da metafisicidade à qual ele próprio se destinou, porém ainda não viciado por ela?

IX.

Estas são algumas das dificuldades decorrentes da problemática trabalhada, a que aditamos agora, e em jeito de conclusão, uma outra que atine, assim o pensamos, à própria indefinição do que seja a Arte, na própria espessura individual do termo. Uma vem concedido que a obra de arte, na sua pregnância é o pôr-em-obra a verdade, e que esta designa o não-retraimento do Ser, não sabemos também que, no seio do pensamento heideggeriano, a verdade se dá também por outras vias? «Todo o ensaio sobre a Origem da obra de arte se move conscientemente, e no entanto sem o dizer, sobre o caminho da questão da essência do ser.
A meditação sobre o que é a arte é inteira e decisivamente determinada pela única questão do ser. A arte não é considerada como uma das manifestações do espírito. A arte advém da fulguração a partir da qual apenas se determina o ‘sentido do ser’. O que pode ser a arte, eis uma das questões às quais o ensaio não dá resposta. E o que parece ser uma resposta não é senão um sinal que guia o questionamento»[32]. Heidegger tem consciência das dificuldades em que se enreda a determinação da essência da Arte.
Se a definição do que seja a Arte brota no fulgor que desencadeia a radical questão do ‘sentido do ser’ temos que outras posturas que não a artística são, para o filósofo, igualmente reconducentes a este primordial perguntar, como por exemplo: a constituição de um Estado, o trabalho fulcral do pensar em se deter no topoz da origem de tudo o que é, e, de modo mais relevante ainda, a própria postura ek-sistencial do Dasein, que, na sua estada autêntica no aberto do ser lhe inquire o sentido, abrindo-se para ele a verdade, qual gratificação pelo árduo labor de pastorear o Ser, esse estar permanente numa dimensão de pré-compreensão ontológica.
O que queremos dizer com isto? Apenas o seguinte: para que a verdade advenha não é preciso que ela ganhe estância na periferia ôntica da obra. Para Heidegger, ela apela constantemente o ser-aí do homem, dispondo-o à escuta da fonte numa postura historial em que a presença mesma da fonte se deixou esquecer. Citando Goethe, como o próprio filósofo o faz no capítulo A Arte e o Espaço do texto “Tempo e Ser”[33]: «Não é sempre necessário que o verdadeiro se incorpore; é bem suficiente que ele plane em redor como espírito e provoque o acordo; que como o canto dos sinos, a sua vaga se espraie pelos ares, sorriso da serenidade».
Suscitar a escuta guardando o olhar virado para a pertença recíproca do Ser e da Palavra, eis a dimensão em que, latamente, a verdade se dá a ver. Não só na Arte, portanto ela está ‘em redor’, borbotejando do todo do mundo, e do Ser. É este todo uma imensa obra de arte, continuamente espantando pela sua enormidade?
Sem dúvida que Heidegger nos diz ainda que «a arte é ela mesma, na sua essência, uma origem, e nada de outro: um modo insigne de acesso da verdade ao ser, isto é, à História»[34]. Porém, perguntamos, se toda a verdade que se des-vela para a História tem a Arte como origem, se a arte esgota, por isso, todas as modalidades de patenteação da verdade?
Por excesso ou por defeito, o conceito de Arte descaracteriza-se, perdendo a sua pre-valência como mostração da verdade pensada a partir de uma poética instauradora, na medida em que não é só por esta que a verdade se manifesta, perdendo igualmente a sua especificidade se pensada a partir do conceito de origem. Afirma o filósofo no Posfácio: «As considerações precedentes concernem o enigma da arte; o enigma que a arte é ela mesma»[35].
No topoz da origem tudo é misterioso: a Arte, como o pensar, como o ente, como o homem. Na tarefa de especificar o que seja a arte, isto de a pensar a partir da origem inefável do brotar-ser pode constituir um último recurso, mas não permite resolver o problema e nada acrescenta de positivo à noção, por nós já estudada, de poética instauradora. Com efeito, conquanto esta categoria permita dilucidar a especificidade da postura da obra de arte, ela permanece todavia impotente relativamente à determinação da essência da própria Arte, a proveniência inicial desta sempre recaindo no domínio para nós insuperavelmente inexplicável e misterioso. Heidegger propondo enigmas... Pretensão do filósofo, ao querer ser Esfinge? Ou erro deste nosso estar metafísico, que nos não deixa ser Édipo?



BIBLIOGRAFIA


¨ HEIDEGGER, M., Sein und Zeit, “Gesamtausgabe”, Band 2, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1977.

* HEIDEGGER, M., Vom Wesen Der Wahrheit, in Wegmarken, “Gesamtausgabe”, Band 9, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1976.

* HEIDEGGER, M., Der Ursprung des Kunstwerkes, in Holzwege, “Gesamtausgabe”, Band 5, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1977.

* HEIDEGGER, M., Einführung in die Metaphysique, “Gesamtausgabe”, Band 40, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1983.

* HEIDEGGER, M., L’Art et l’Espace, in Questions IV, trad. do alemão por André Préau, Roger Munier e Julien Hervier, Paris, Gallimard, 1966.


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[1] «Bosque soa a um antigo nome para floresta. No bosque há caminhos, a maior parte das vezes emaranhados matagais que terminam repentinamente. Cada um explora o seu caminho, mas na mesma floresta. Frequentemente, parece que um é análogo ao outro. Mas não é senão uma aparência.
Lenhadores e silvícolas conhecem-se nos caminhos. Sabem o que significa estar nos caminhos da floresta». (M. Heidegger, «Holzwege», in Gesamtausgabe, I. Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1914 - 1970, Band 5, p. 2 (traduzido do original por Isabel Rosete).
[2] M. Heidegger, in Einführung in die Metaphysique, p. 40.
[3] M. Heidegger, «Der Ursprung des Kunstwerkes», in Holzwege , p. 28.
[4] Idem, p. 36.
[5] Idem, p. 37.
[6] Idem, pp. 49-50.
[7] Idem, p. 47.
[8] Idem, p. 47.
[9] Idem, p. 54.
[10] Idem, p. 61.
[11] Cf. por exemplo Einführung in die Metaphysique, p. 187.
[12] Idem, p. 41.
[13] Idem, p. 69.
[14] Idem, pp. 68-69.
[15] Idem, p. 97.
[16] Idem, p. 98.
[17] Idem, p. 42.
[18] Idem, pp. 69-70.
[19] Idem, p. 85.
[20] Idem, p. 88.
[21] Idem, p. 22.
[22] Idem, p. 84.
[23] Idem, p. 84.
[24] Idem, p. 73.
[25] Idem, p. 84.
[26] Idem, p. 85.
[27] Idem, p. 75.
[28] Idem, p.75.
[29] Idem, p. 91.
[30] Idem, p.81.
[31] Idem, p. 75.
[32] Idem, p. 97.
[33] M. Heidegger, «L’Art et l’Espace», in Questions IV, p. 105.
[34] Idem, p. 88.
[35] Idem, p. 88.


Isabel Rosete

Stembro, 2007



HEIDEGGER E A INSTAURAÇÃO DE UMA POÉTICA DA PALAVRA

Por Isabel Rosete


A reflexão heideggeriana sobre a linguagem não é jamais uma mera perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a linguagem e a realidade, sobre a propriedade ou impropriedade da mesma para descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre um "aspecto" do estar-aí do homem.
É, ao invés, a forma mais eminente da experiência e da expressão da própria realidade, já que é na linguagem que se dá a abertura do Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser atingido através do auscultar do significado primordial das palavras.
As coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior, mas na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na presença espacio-temporal. As coisas são, no sentido do recolectante "fazer-morar", só na linguagem que, como veremos adiante, é essencialmente Poesia: eis como deveremos entender a afirmação segundo a qual é a palavra que "torna coisa" (be-dinget), a coisa (Ding).
Se quisermos compreender, precisamente, este modo de ser da coisa na palavra devemos pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é justamente uma maneira de remontar, através das vicissitudes e das conexões das palavras, às dimensões autênticas, ontológicas, da coisa, em si mesma, nomeada.
A figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma "emergência", um "des-ocultamento", um movimento para a luz. Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da linguagem se apresentar, na sua mais radical essencialidade, como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.
A palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser.
Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica. É indubitável que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.
Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do "homo superfulus", que habita cada vez mais o homem destas duas últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta e nos daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser.
Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica. É indubitável que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.
Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do "homo superfulus", que habita cada vez mais o homem destas duas últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta.
É definitivamente forçoso destruir a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras; são, antes, os objectos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.
O sentido do Discurso, que Heidegger define em Sein und Zeit (Ser e Tempo) como sendo " a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo (o homem) no sentimento de situação" (p.201), nunca é construído, mas sempre descoberto.
O mundo mostra-se-nos investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja tomada como uma leitura hermenêutica da experiência, expressão que assume uma vasta e originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento do Ser.
O homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação. Muito embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre acesso aos entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada pela e através da linguagem.
Apenas onde há linguagem há mundo, quer dizer, uma esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas também de arbítrio e de con-fusão.
A análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem no universo do discurso. O "Da-sein" (ser-aí do homem) determina o modo como o próprio homem se interpreta como ente que fala e falar equivale a fazer surgir o ser do real: a linguagem é um modo do ser, uma estrutura da Ek-sistência. Porém, não é um existencial entre outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do "Da-sein”, mas uma determinação essencial do ser-homem, não obstante construir, a um tempo, a sua grandeza e a sua miséria.
O discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-sistência é o discurso que reflecte esta linguagem fundamental: "a linguagem é a casa do ser", na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste, pertencendo `a verdade do ser que ele próprio vigia.
Em Uterweges zur Sprache (Caminhos da Linguagem), Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora, que aliás é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.
A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada passagem de Ueber den Humanismus (Carta Sobre o Humanismo) resulta justamente da firme convicção segundo a qual a linguagem é própria do homem, não apenas porque para além de todas as suas outras faculdades o homem também tem a genial capacidade de falar, de comunicar inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas por intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao Ser. Eis o que urge recuperar face a este permanente esquecimento do da autenticidade da linguagem que conduz,
Segundo o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja. Porém, jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o Ser, mas o ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o determina.
Face à significação atribuída a este modo específico de revelação, o homem surge-nos apenas como o portador da linguagem – em virtude de a linguagem não radicar na essência do homem, mas manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo segundo esta essência que ela é dita como a "casa do Ser" – e como tal tem a função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu intermédio.
Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o desocultar, de o colocar na Não-latência e com ele a essência do homem, a linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua nudez primordial.
A linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para além das pelavas é possível porque o Ser, essa Alma da linguagem, é o lugar da nossa permanência.
A língua que nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens exprime sempre algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime a s relações ocultas que a palavra mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.
A linguagem é um Acontecimento que, ao manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do Acontecimento interior à linguagem e a escrita o depósito da Tradição do Ser. Por isso, ao interrogar-se o Ser, a linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da Tradição e a escrita aos limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua manifestação. Neste sentido, a linguagem reside na diferença interior à palavra do ser que se inscreve entre o Acontecimento o qual, ao mesmo tempo, desvela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.
A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma ilusão de representação. Há sempre para além uma Palavra essencial que o coloca na Presença, mas que não pode ser captada como palavra porque o Acontecimento do ser é a sua marca concomitantemente oculta e desvelada.
Se em Sein und Zeit a linguagem já ocupava uma posição peculiar, pois, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da mundaneidade, nas obras posteriores, nomeadamente em Der Ursprung des Kunstwerkes e na conferência sobre Hölderlin und das Wesen der Dichtung, aparece-nos como o próprio modo do abrir-se na abertura do Ser, principalmente enquanto é pensada como poesia, essa arte originária da palavra.
Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma vez que nos é dito que a "linguagem é poesia no sentido essencial", ou como Heidegger refere em Einführung in die Metaphysik, " a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em que um povo diz o Ser" e, inversamente, a grande poesia, pela qual um povo entra na sua História, inicia a configuração da linguagem.
Dizer que a linguagem é poesia apenas, no sentido essencial, significa afirmar que o falar autêntico é criação, abertura, inovação ontológica, uma vez que nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já aberta.
Na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o estar-aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, "o fundo que rege a História do homem", porque o que perdura fundaram-no os poetas e fundar o que permanece ou fundar o permanente significa desvelar o Ser para que o ente apareça, só por eles alcançado porque são os únicos capazes de nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.
O nomear do poeta não consiste, porém, em atribuir um nome a uma coisa anteriormente conhecida mas, ao invés, falando, o poeta celebra a palavra essencial e celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é; através desta nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a "fundação do Ser pela palavra" e esta fundação é doação livre.
Quando os Deuses são nomeados originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme e é colocada sobre o terreno desta doação.
A poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno de cultura nem a expressão de uma "alma natural", mas a obra suprema da linguagem, enquanto dada como projecto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung) do Ser. o Dizer do poeta é, por conseguinte, este mesmo projecto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este Dizer, que em si mesmo é Poema, nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de jogo do seu combate. Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do Dizer no qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade da Terra no seu oferecimento original.
Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal instauração possui o carácter de ser um dom fundado e inicial, rebatendo toda a familiaridade da aparência. Fundando poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o "Dasein" (o homem) é poético (dichtrich) e em que sentido é dito que " de um modo poético habita o homem sobre esta terra". Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela proximidade das coisa.
O fundamento do "ser-aí" (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio acontecer da linguagem primordial que é poesia como fundação do Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de um povo, historicamente concebido, pela qual ele diz o seu ser, percebemos, ao mesmo tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da essência da Poesia, tal como a essência da Poesia é compreendida a partir da essência da Linguagem.
Tomada a partir desta perspectiva, a linguagem a linguagem não é apenas criação e inovação ontológica, como já se havia referido, mas fundamentalmente a sede, o lugar do acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que está lançado o "Da-sein".
É a linguagem que "rege o nosso estar-aí" e, por esta razão, dependendo dela de um modo umbilicalmente profundo:" a linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem". Enquanto tal apropria-se de nós, na medida em que com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível experiência do Mundo.
Só na linguagem as coisas nos podem aparecer e só no modo como ela as faz aparecer; é a palavra que proporciona o ser da coisa e todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.
Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico, requer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e originariamente, mais do que uma faculdade de que dispomos; é um "dirigir-se a nós", sem o qual não poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é, acidentalmente, um "dirigir-se a nós". Pelo contrário, é nesse "dirigir-se a nós", que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.
A linguagem, afirma Heidegger em Sein und Zeit, " tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística". É anúncio, apelo, mensagem e nós, homens, somos usados por ela como "mensageiros da voz do Ser". A linguagem não se dá senão no falar do "Da-sein" e, todavia, é verdade que tal falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que responde.
É neste sentido que devemos entender porque é que retoma do "poeta do poeta" (Hölderlin) a caracterização do homem como Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na linguagem e porque é que só acontece verdadeiramente no Diálogo.

Isabel Rosete
Setembro 2007