quinta-feira, 13 de março de 2008

OS «SINTOMAS DO ESTÉTICO» E A TEORIA DO FUNCIONAMENTO SIMBÓLICO DAS OBRAS DE ARTE, Parte II, por Isabel Rosete

§ 1. Exemplificação, Símbolos Estéticos e Obras de Arte

As versões-de-mundos decorrentes do funcionamento exemplificativo das obras de arte não são senão símbolos ou redes de símbolos que, ao funcionarem como amostras de certas formas, sentimentos ou cores, bem como de descrições de personagens e/ou acontecimentos passíveis de serem compartilhados ou compartilháveis pelas coisas presentes no nosso mundo, induzem, quiçá necessariamente, à sua organização ou reorganização em conformidade com as características que possuem.
A teoria de Goodman mostra-nos, ainda, que a exemplificação é uma forma de referência não denotacional extremamente importante, amiúde negligenciada por filósofos e críticos de arte. É um modo de referência por uma amostra[1], e jamais se apresenta como uma variação de denotação, quer nos referiramos à denotação verbal, quer à denotação pictórica. Não se confunde com essa forma de predicação ou descrição na qual uma palavra ou um conjunto de palavras se aplicam a uma coisa, a um fenómeno, ou a cada coisa entre muitas: por exemplo, «”estado” denota cada um dos cinquenta membros da federação»[2].
O termo denotação é entendido de um modo muito mais amplo do que é habitual, e não é senão um modo de aplicação de uma palavra, de uma imagem ou de qualquer outra etiqueta a uma ou a muitas coisas. Esta definição apresenta-se-nos como uma espécie de referência possuindo subespécies multiplamente diferenciadas, pelo que pode ser mais ou menos geral, vaga, ambígua, podendo variar em função do contexto e do tempo. Também os traços exemplificativos são altamente variáveis e, por isso, a exemplificação torna-se tão ambígua como a denotação.
Caracterizada logicamente, a denotação mostra-se-nos como uma relação semântica binária entre um símbolo e aquilo a que esse símbolo se aplica. Um símbolo denota sempre o que nomeia ou aquilo que é uma instância dele, ou que concorda com ele. Um nome próprio, por exemplo, Gonçalo, denota o seu possuidor, o indivíduo assim denominado, tal como o retracto que tenho no escritório, feito a grafite sobre papel por um dos pintores do Sena, denota-me a mim própria, o seu representado, do mesmo modo que uma partitura denota a sua execução.
É por isso que aos símbolos que funcionam denotativamente Goodman chama etiquetas, quer se refira a símbolos verbais ou não-verbais. Assim, o vocábulo “cavalo” (a etiqueta “cavalo”) ou um desenho/pintura de cavalo ou o relinchar do animal, o som, podem ser utilizados como etiquetas para denotarem o cavalo, de facto. Ora, como os objectos denotados podem, por seu turno, referir as etiquetas que os denotam, verificamos que a referência se processa na direcção inversa à da denotação. A referência implica que subamos do objecto denotado à etiqueta que o denota. Ao referir essas etiquetas, o objecto torna-se um símbolo porque está por essas etiquetas.
Assim, um objecto que é denotado por uma etiqueta e refere simultaneamente essa etiqueta, ou, então, a respectiva propriedade, pode ser dito exemplificar essa etiqueta. É, por isso, que aos símbolos que funcionam exemplificativamente chamámos etiquetas. O cavalo, por exemplo, pode funcionar tanto como amostra de “cavalo”, de “elegante” ou de “inteligente”, como também de um desenho de cavalo, do som, relinchar, ou de qualquer outra etiqueta verbal ou não verbal que se lhe possa aplicar, mas se e somente se for empregue para referir essas etiquetas.
Torna-se claro que existe uma estreita relação entre denotação e exemplificação, não obstante salvaguardarmos que os termos etiqueta devem ser entendidos como termos técnicos que usamos para designar os símbolos quando estão a funcionar denotativamente ou exemplificativamente. Percebemos, agora de uma maneira mais evidente, porque é que denotação e exemplificação mantêm entre si um relacionamento muito próximo, porque é que as coisas ou os acontecimentos são os referentes das etiquetas, que os objectos de denotação, as etiquetas são os referentes das amostras, os objectos da exemplificação e, ainda, que é pouco natural que falemos de etiquetas como objectos de exemplificação, uma vez que são as propriedades e não as etiquetas que são susceptíveis de serem exemplificadas (um objecto exemplifica preto e não “preto”).
Uma vez que definimos a noção de exemplificação a partir da relação primitiva de referência e da relação de denotação, estamos dispostos a aceitar, sem reservas, que exemplificar é sinónimo de possuir e de referir e que possuir é, por seu turno, sinónimo de ter sido denotado. Embora não seja claro de que modo uma coisa que possui determinadas propriedades possa referir essas propriedades, sabemos, no entanto, que quando falamos de exemplificação estamos a referir-nos àquilo que uma amostra faz para além de possuir. À luz desta argumentação, o termo exemplificar torna-se sinónimo de “remeter para”, “mostrar”, “exibir”, “tornar manifesto”, “seleccionar”, “pôr em foco” ou “impor-se à nossa consciência” isso que é mais enfático entre um conjunto de características ou propriedades de um mesmo objecto.
Podemos compreender, de acordo com esta ordem de razões e tendo em consideração os exemplos já apontados, que uma pedra, num passeio, que não refere nenhum dos seus traços pode servir de espécie geológica ou como um objecto de arte (lembremo-nos, apenas a título de exemplo, da pedra de Alberto Carneiro) em função dos traços permanentes que exemplifica em cada um destes contextos particulares.
Mas, o que importa verdadeiramente é a própria obra, bem como os traços que em si mesma possui e não ao que possa reenviar ou o que, eventualmente, possa referir. Digamos que, quando lidamos com obras de arte, importa essencialmente que nos ocupemos quer das qualidades e das relações, quer das cores ou dos sons, dos motivos espaciais ou temporais, consoante nos confrontamos com uma obra de literatura, com uma pintura ou com uma partitura musical. Importa que nos ocupemos com essas propriedades que a obra realmente exemplifica e às quais se refere de uma maneira selectiva, invariavelmente selectiva, tal como a amostra de tecido do alfaiate se refere apenas a certas propriedades e não a outras, também, presentes no referente de que é amostra.
O contributo da exemplificação para a interpretação/compreensão da pintura, e da arte em geral, é absolutamente fundamental. A exemplificação ao ser selectiva, ao fundar-se no princípio da “selectividade predicativa”, diz apenas respeito à relação patenteada entre o símbolo pictórico apresentado no e pelo (o que dizemos em relação à pintura é válido para todas as artes em geral) e certas etiquetas que o denotam ou certas propriedades que a obra, em si mesma, possui e não outras (Goodman frisa várias vezes que as propriedades exibidas pela obra não lhe são exteriores, como pretendiam os formalistas). Porém, não podemos cair no erro de considerar que a exemplificação é uma simples possessão de um determinado traço, pois exige, sempre, a referência a esse traço. E é justamente uma tal referência que distingue os traços ou propriedades exemplificadas das que são simplesmente possuídas. Neste sentido, e voltando à relação entre exemplificação e denotação, diremos que a exemplificação não é senão uma sub-relação da conversão da denotação, distinguindo-se desta pelo retorno da referência para o denotante pelo denotado.
Se chamámos exemplificação à exibição de terminadas propriedades possuídas pela obra, então as propriedades que realmente contam numa pintura são aquelas que a pintura não apenas possui, mas exemplifica, o que faz da exemplificação um princípio geral da arte. De facto, é absolutamente incompatível com a teoria de Goodman considerarmos que existem regras ou instruções uniformes, testes, ou procedimentos do género, para determinar para cada obra de arte particular quais são as propriedades exemplificadas, do mesmo modo que não existem regras universais, tal como na ciência, que nos permitam determinar o que quer que seja de um modo universal, o que é representado nas obras de arte.
Encontramos sempre dificuldades em interpretar o que exemplifica um símbolo estético, em virtude da complexidade que o mesmo encerra, o que normalmente não acontece com as amostras triviais com que lidamos todos os dias. Pela exemplificação é-nos permitido aceder à constituição da explicação estética propriamente dita, uma vez que podermos colocar as questões essenciais que este domínio, por si mesmo, determina como fundamentais, a saber: como é que o espaço plástico está organizado na obra? Quais as cores utilizadas e com que predominância ou intensidade? Como é obtida a iluminação? Como são as linhas, os arabescos? Qual o estilo? Como são a composição e a construção?

§ 2. Exemplificação e Expressão

Estas questões permitem-nos encontrar a progressão que vai das propriedades meramente possuídas até às propriedades exemplificadas. De qualquer modo tudo o que é exibido por uma obras de arte é exemplificado por ela. A exemplificação intervém não só nas propriedades familiarmente conhecidas por formais, mas também na expressão e no estilo e, de modo indirecto, na alusão e na representação fictícia e até mesmo na “representação-como”, pelo que está presente nas características mais interessantes das obras de arte.
A linguagem de Goodman dá-nos precisamente conta dessas dificuldades hermenêuticas que afectam a pintura abstracta, na medida que nos permite aceder, com mais facilidade, à semântica e à sintaxe das obras totalmente abstractas, precisamente porque a expressão é, tout court, um modo de simbolizar algo fora da pintura, a qual não percebe, pensa, ou sente.
Embora não seja propriamente objecto deste ensaio a feitura de um estudo detalhado sobre a teoria goodmaniana da expressão, importa, contudo, analisarmos alguns dos seus pontos centrais, para que possamos compreender melhor toda a controvérsia gerada com as teses formalistas e, nomeadamente sobre a defesa de obras de arte absolutamente puras. Ora, a tese central apresentada por Goodman sobe a expressão indica-nos que:
a) Este processo de simbolização é uma propriedade objectiva das obras de arte;
b) É um caso de exemplificação metafórica que jamais pode ser confundido ou com a manifestação das emoções do artista, ou com os sentimentos que provoca no percipiente, ou, ainda, com o assunto representado ou descrito.
As componentes fundamentais da expressão são a exemplificação e a metáfora. A exemplificação e a metáfora, porque uma obra de arte que exprime uma determinada propriedade possui essa mesma propriedade, quer dizer, é denotada pela respectiva etiqueta e essa posse ou denotação é metafórica e, por isso, a obra exemplifica essa etiqueta.
Todavia, para que a exemplificação metafórica assim obtida seja, de facto, expressão, é necessário que:
a) A obra de arte esteja a funcionar como símbolo estético;
b) A propriedade expressa dependa apenas da espécie de símbolo que a obra de arte é;
c) A transferência implicada na metáfora seja uma transferência de domínio e não apenas uma transferência de extensão.
Sabemos, então, que o facto de as propriedades expressas dependerem das propriedades possuídas literalmente pela obra de arte, implica que as propriedades expressas sejam constantes relativamente ás propriedades literais, pelo que desde que permaneçam as mesmas propriedades literais, permanecem também as mesmas propriedades expressas. E esta tese que nos permite explicar e justificar a objectividade da expressão. No entanto, o que percepcionamos como propriedades literais, nunca é feito de um modo ingénuo, pois está invariavelmente depende do contexto a que a obra se circunscreve.
A constância da relação entre as propriedades literais e as propriedades expressas só se obtém dentro de um dado sistema. Isto significa que as obras de arte podem exprimir diferentes propriedades, quando integradas em diferentes sistemas. Esta tese permite-nos, agora, explicar, o relativismo contextual da expressão, e colocar de lado qualquer espécie de determinação absoluta que se adiante a este respeito.
A partir das teses expostas é-nos permitido conciliar o fundamental das teses formalistas, segundo as quais as obras de arte possuem, de facto, as propriedades que exprimem – com a tese das teorias semânticas, que nos apresenta a expressão como uma relação de simbolização, sem que tenhamos de identificar essa relação com a denotação. É, portanto, a exemplificação entendida como posse, conjuntamente com a simbolização que possibilita o estabelecimento deste enlace e proporciona a sua explicação.
Pela exemplificação é-nos permitido saber que, quando olhamos para uma determinada pintura, há propriedades relevantes que devemos ter em consideração, bem como devemos ignorar outras por não serem relevantes em função do contexto a que a pintura e a nossa interpretação se circunscrevem. A exemplificação, forma peculiar de referência ou de simbolização, permite-nos, ainda, verificar a relatividade das propriedades exemplificadas ou a exemplificar por uma dada pintura: várias pinturas que possuem exactamente as mesmas propriedades podem exemplificar, ou serem «símbolos-amostras» de propriedades diferentes em contexto dissemelhantes.
Se quisermos ser ainda mais claros, diríamos, numa palavra, que a exemplificação não é senão a relação simbólica que ocorre quando um objecto refere algumas das propriedades que possui. Assim algumas pinturas de Malevich exemplificam as três cores primárias (ex. «Aeroplano em Voo», 1915; «Suprematismo», 1915 ou «Pintura Suprematista», 1916) e a quadrangularidade (ex. «Quadrado Negro», 1923‑1929; «Quadrado Vermelho», 1915; «Quadrado Negro e Quadrado Vermelho», 1915)[3].
A função exemplificativa da arte, cuja argumentação é, em grande parte, apresentada por Goodman no já citado debate com os formalistas centrado em derredor da noção de «puro» em arte, à luz da qual legitimam a exclusão de tudo o que é simbólico ou referencial, como a representação e a expressão, ao ser assim demostrada permite manter, sem qualquer traço possível de contradição que: por um lado, se todas as obras de arte são símbolos, então, referem necessariamente, mesmo quando não denotam absolutamente nada; e, por outro, a determinação de uma estética unificada.
Embora não adiantemos muito mais no que concerne às múltiplas amostras pictóricas de versões-de-mundos da arte da pintura (e escolhemos estas segundo o critério da maior representabilidade das propriedades que exibem os traços mais marcantes da mundivisão contemporânea) à noção de exemplificação e à acesa discussão que Goodman mantém com os formalistas, com a posição purista, tomada pelo autor como «inteiramente certa e inteiramente errada»[4], não podemos obnubilar que essa estratégia socrática, tão bem empregue pelo autor, resulta na conclusão segundo a qual a exemplificação é, inquestionavelmente, uma forma de simbolização. Ficou, então, demonstrado que:
a) A exemplificação é a razão de ser, a justificação e o objectivo da arte abstracta, na medida em que as versões-de-mundos construídas através do funcionamento simbólico das obras de arte abstractas são sistemas simbólicos exemplificativos exibindo, literal ou metaforicamente, determinadas características, tais como formas, cores, texturas, sons ou até mesmos sentimentos, compartilhados ou compartilháveis, directa ou indirectamente, pelas coisas do nosso mundo, convidando-nos, em qualquer caso, à reorganização deste em conformidade com essas mesmas características. Em consequência, decorre que, mesmo as obras que não representam coisa alguma, não se reduzem a objectos decorativos. Contribuem, a par daquelas que são representativas, de uma forma igualmente poderosa para a nossa organização visual do mundo;
b) A pintura chamada «pura» – essa pintura que exclui o simbólico e o referencial, a representação e a expressão, uma vez que, consideram os formalistas, há muitas obras de arte que não denotam o que quer que seja, pelo que não podem ser consideradas referenciais e, por conseguinte, não podem ser simbólicas – tem ainda uma função simbólica e que a noção de exemplificação, pela qual o filósofo ultrapassa o dilema purista – e, genericamente, os dilemas da arte – é absolutamente fundamental para dar a resposta adequada à problemática da distinção entre propriedades internas e externas das obras de arte, do formal e do não formal, da noção de símbolo e da aplicação da teoria geral dos símbolos às obras de arte.

Desta discussão, que muito abreviadamente expusemos, torna-se perfeitamente claro que:

a) Mesmo as pinturas que não representam nada (lembremo-nos do «Jardim das Delícias» de Bosch), têm um carácter representacionista, o que significa que são símbolos, e que, consequentemente, não são «puras»;
b) Não são apenas as obras representacionistas que são simbólicas: uma pintura abstracta que não representa nada pode exprimir e, por conseguinte, simbolizar um determinado sentimento, emoção ou ideia;
c) Uma pintura, qualquer obra de arte, onde se encontra ausente a representação ou a expressão, continua a ser um símbolo, mesmo quando o que simboliza não são pessoas, sentimentos ou coisas, mas certos padrões de textura, forma, cor ou estilo;
d) A noção de exemplificação é construída com base nas noções de possuir e referir, pelo que exemplificar é facilmente identificado com exibir;
e) A pintura exemplifica e não apenas possui as propriedades que são esteticamente relevantes e o que fornece a base a partir da qual essas propriedades são seleccionadas é algo que a pintura faz para além de possuir;
f) Como exemplificar é uma forma de referir ou de simbolizar, essas propriedades são aquelas de que a pintura é realmente símbolo;
g) Funcionamento simbólico não é exterior ao símbolo, à obra de arte;
h) A exemplificação ao assegurar que todas obras de arte são símbolos, abre o caminho para a construção de uma teoria simbólica para toda a arte;
i) A função simbólica não é, pois, uma propriedade que se encontra, aleatoriamente, associada a algumas formas de arte, mas é uma propriedade que, de modos diversos, se encontra presente em todas as formas de arte, quer dizer, é condição necessária para que haja arte;
j) Um dado objecto, por mais comezinho que seja, acede ao estatuto de obra de arte, não apenas porque funciona como símbolo (a Águia é o símbolo do «Benfica», mas não é uma obra de arte), mas sobretudo porque se apresenta como símbolo estético, quando reúne em si os «sintomas do estético» (como demonstraremos no ponto seguinte);
k) Objecto estético e obra de arte fundem-se, assim, na noção de «símbolo estético».

Isabel Rosete
Março de 2008

Notas:
[1] No texto «When is Art?», Goodman é perfeitamente claro no que concerne à noção de amostra de que temos vindo a falar e importa agora definir rigorosamente, de molde a evitar qualquer espécie de equívocos.: «Considere-se de novo, refere o autor, uma vulgar amostra de tecido no catálogo de amostras de um alfaiate ou estofador. É improvável que seja uma obra de arte, que representa pictoricamente ou exprima alguma coisa. É simplesmente uma amostra – uma simples amostra. Mas de que é ela uma amostra? Da textura, da cor, da tecedura, da grossura, das fibras de que é feita ...; tudo o que importa nesta amostra, somos tentados a dizer, é que ela foi cortada de uma peça de tecido e tem as mesmas propriedades do resto do material. (...) A moral da história é (...) uma amostra é amostra de algumas das suas propriedades mas não de outras. O retalho é uma amostra de textura, cor, etc., mas não de tamanho ou de forma (...) Em suma o que interessa é que uma amostra é uma amostra de – ou exemplifica – apenas algumas das suas propriedades, que as propriedades apara as quais ela apresenta esta relação de exemplificação variam com as circunstâncias, podendo apenas ser distinguidas como essas propriedades das quais ele serve, em dada circunstância, de amostra. Ser uma amostra de ou exemplificar é uma relação um tanto como ser amigo. (Cf. Goodman, Modos de fazer Mundos, pp. 110 - 11.
[2] N. Goodman & C. Elgin, Esthétique et Connaissance ( Pour Changer de Sujet), p. 17
[3] V. Ilustrações em apêndice, p. 77 e pp. 79 - 82.
[4] Cf. N. Goodman, Modos de Fazer Mundos, p. 106. Mais à frente Goodman volta a esta questão, fornecendo-nos uma resposta perfeitamente satisfatória do enigma que está por detrás desta problemática: «Que é, então, da proclamação inicial do purista, da qual eu disse jocosamente que estava inteiramente certa e inteiramente errada? Está inteiramente certa em dizer que o que é extrínseco é extrínseco, em assinalar que muitas vezes que aquilo que um quadro representa importa muito pouco, em argumentar que nem a representação nem a expressão são requeridas numa obra e em salientar a importância das chamadas propriedades intrínsecas, internas ou “formais”. Mas a declaração está inteiramente errada em assumir que a representação são as únicas funções simbólicas que as pinturas podem realizar, em supor que aquilo que um símbolo simboliza está sempre fora dele, e em insistir que aquilo que conta numa pintura é a mera posse, em vez da exemplificação, de certas propriedades». E nesta linha argumentativa surge a inferência fundamental: «Quem quer que procure arte sem símbolos, nesse caso não encontrará nenhuma – se todos os modos das obras simbolizarem forem tomados em conta. Arte sem representação, expressão ou exemplificar – sim; arte sem nenhuma das três – não». Por isso, acrescenta o autor, «salientar que a arte purista consiste simplesmente em evitar certas espécies de simbolização não é condená-la, mas apenas pôr a nu a falácia presente nos manifestos habituais que defendem a arte purista com exclusão de todas as outras espécies de arte. Não estou a debater as virtudes relativas das diferentes escolhas, tipos ou formas de pintar. O que me parece mais importante é que o reconhecimento da função simbólica, mesmo da pintura purista, nos dá uma pista para o problema perene de quando temos e não temos uma obra de arte». (Cf. op. cit., pp. 112 - 113).
OS «SINTOMAS DO ESTÉTICO» E A TEORIA DO FUNCIONAMENTO SIMBÓLICO DAS OBRAS DE ARTE, Parte I, por Isabel Rosete

«A questão de saber exactamente que características distinguem ou são indicadores da simbolização que constitui o funcionamento da algo como obra de arte pede um estudo cuidadoso à luz de uma teoria geral dos símbolos. Isto é mais do que aquilo que posso aqui empreender, mas arrisco a hipótese de que há cinco sintomas do estético»[1]

§ 1. O Estatuto Epistemológico dos “Sintomas do Estético”

Se, para Goodman, todas as obras de arte são símbolos e se todos os objectos podem funcionar como símbolos, então todos os símbolos são símbolos estéticos e todos os objectos podem ser considerados, indiferentemente, como obras de arte? Obviamente que não. Embora o sistema filosófico de Goodman seja profundamente amplo, não é compatível com qualquer forma de arbitrariedade que nos impeça de distinguir, com precisão, o estético do não estético. Requer, ao invés, o máximo de rigor em cada afirmação que proferimos ou em cada interpretação que apresentemos de uma pintura, de um poema ou de uma dada partitura musical. A fuga ao aleatório, ao puramente relativista e arbitrário é encontrada num conjunto de sintomas, que o autor denomina por “sintomas do estético”.
Os sistemas da arte tendem a ser, preferencialmente, e ao invés dos da ciência, «sintáctica e semanticamente densos, saturados, exemplificativos e multireferenciais»[2]. Este conjunto de características constituem os meios adequados que nos permitem distinguir o estético do não-estético. São propriedades dos símbolos, pelo que é-nos permitido construir a experiência estética assim como a experiência que temos dos objectos atentando no funcionamento simbólico dos objectos de acordo com estas características e, do mesmo modo, construir as obras de arte como os objectos que desempenham esse mesmo funcionamento.
As cinco características não determinam propriamente a dimensão estética do objecto, nem tão pouco fornecem nenhuma definição ou descrição. Têm, apenas, o estatuto epistemológico de “sintomas”. São pistas, que nos permitem identificar quando um dado objecto pode ou não ser considerado como pertencente ao domínio do estético está a funcionar como obra de arte; são sinais que, em conjunto com outros, tendem a estar presentes quando há uma situação estética, indicando, portanto, o estético probabilisticamente. São, numa palavra, “sintomas”, “sintomas do estético” que, contudo, só podem requerer «alguma redefinição das várias e erráticas fronteiras do estético» se chegarem «algures perto de serem disjuntivamente necessários e conjuntivamente suficientes (como um síndroma). Além disso, repare-se que estas propriedades tendem a concentrar a atenção no símbolo, pelo menos tanto ou mais do que aquilo a que ele se refere».[3]
Tal como o médico detecta uma determinada doença depois de fazer o diagnóstico detalhado com base nos sintomas que o doente lhe apresenta (sabemos que, por exemplo, ter os olhos vermelhos, lacrimejantes, congestionadas é sinal de conjuntivite), o artista, o crítico de arte, o filósofo ou o simples espectador com o mínimo de formação sabe distinguir o que pertence ou não pertence à esfera do estético. São esses sintomas que nos mostram “quando é arte”: um objecto funciona como arte quando funciona simbolicamente exibindo os (ou alguns dos) sintomas do estético.

§ 2. Os “Sintomas do Estético” como Resposta à Questão “Quando é Arte?”

Encaminhámo-nos, assim, para a resposta à questão que pergunta “Quando é Arte?” – embora não tenhamos respondido àquela que inquire “O que é a Arte?”[4] ‘preterida pelo autor, por razões óbvias que parece interessar apenas aos essencialistas, os quais procuram uma definição única para a pluralidade dos fenómenos estéticos. A questão “Quando é Arte?” enuncia uma das problemáticas centrais de Modos de Fazer Mundos, e, quiçá, de toda a filosofia da arte se considerarmos, desde Duchamp, pelo menos, alguns dos casos mais bizarros da arte contemporânea, cuja problematização terá de ser claramente colocada em termos da função simbólica da arte.
Se a primeira questão se revela filosoficamente interessante, a segunda nem por isso. Não estamos, de facto, num sistema essencialista que procure a busca exaustiva dos fundamentos, ou essências das coisas, a revelação da essência primordial de todo o ente que é, mas num sistema que coloca em primeiro plano a noção de símbolo, quando se refere à arte e a todos os outros modos de construção de mundos. Num sistema filosófico que vê o mundo pelos óculos da teoria geral dos símbolos e do funcionamento simbólico das obras de arte e que não determina o que é arte pela delimitação de uma qualquer formulação eidética nem tão-só pelos critérios que as teorias institucionais possam delimitar como os mais adequados para distinguir o que é obra de arte daquilo que (aparentemente) não é.
Ambas as posições – a essencialista e a institucionalista – excluíram muitas das obras que hoje consagramos. Apresentam-se aos olhos de Goodman como excessivamente reducionistas por não considerarem a potencialidade simbólica de qualquer objecto que pode funcionar como obra de arte (e o termo a sublinhar é precisamente funcionar), tendo em consideração os sistemas e os contextos, simplesmente porque exemplifica, porque é amostra ou “símbolo-amostra” de, porque está em vez de, mesmo que a sua denotação seja absolutamente nula. Ora, como a simbolização não está dependente das propriedades intrínsecas dos objectos, ao invés dos valores que tradicionalmente eram confinados à arte (o belo, o harmonioso, o sublime, etc.), resta-nos reiterar a tese de que qualquer coisa pode funcionar como arte desde que exiba os referidos “sintomas do estético”. A arte conceptual ou os ready-made e os happennings, encontram, agora, o seu lugar de acolhimento adequado.
Esta problemática conduz-nos à importantíssima questão que se situa no ponto em que devemos fazer a distinção entre o funcionar como obra de arte e o ser obra de arte. Esta distinção é feita em termos da estabilidade do funcionamento simbólico e indica-nos que um objecto funciona como obra de arte, quando, e somente quando (o ponto central da questão “Quando há arte?”, situa-se precisamente no «quando», porque o que interessa é saber quando é que um objecto funciona como arte), funciona como símbolo que exibe os, ou alguns dos sintomas do estético, admite Goodman. Mas, só é uma obra de arte, se e somente se, a sua função habitual é justamente essa.
É neste sentido, que devemos entender a tese que afirma que um objecto “X” pode estar a funcionar como arte e não ser arte (o caso da pedra de Alberto Carneiro, a que já nos referimos, encontra aqui a sua explicação e legitimação definitiva), ou, pelo contrário, um objecto “Y” ser arte e não estar a funcionar como arte (se colocarmos «O Banho» (1989), de Botero, a tapar o buraco deixado por uma janela cujos vidros se partiram, estamos a exemplificar o caso do objecto “Y”: a consagrada obra de arte deixa, naquele momento, de funcionar como obra de arte, embora o quadro não deixe de ser uma obra de arte, porque não desempenha essa função, mas outra que lhe é absolutamente estranha, e para a qual não foi feito)[5].
Os “sintomas do estético”, em virtude de constituírem um conjunto de noções clara, rigorosa e sistematicamente construídas, susceptíveis de serem examinados e discutidos, permitem-nos, pois, compreender as mais importantes propriedades tradicionalmente atribuídas, como elementos distintivos da arte, bem como todas aquelas que inesperadamente vão sendo introduzidas cada vez que uma nova «versão-de-mundo» é construída. Os “sintomas” apresentam como objectivo imediato explicar o porquê da complexidade da compreensão das obras de arte, resultante da dificuldade que habitualmente encontramos na identificação dos seus símbolos e dos seus referentes, sem que tenhamos de ceder às pressões intelectualistas, segundo as quais a percepção estética é enformada por um carácter transcendente, misterioso e até mesmo inefável.
Este conjunto de “pistas” ou “sinais” – termos absolutamente sinónimos pelos quais nos referimos aos “sintomas” – são requisitos que funcionam como uma espécie de bitola pela qual nos é permitido estabelecer as fronteiras entre o estético e o não estético, bem como identificarmos, sem arbitrariedade, “Quando é Arte?”. A sua aplicação é retrospectiva e prospectiva. O seu âmbito é assaz abrangente e a sua capacidade de abertura ao novo, ao diferente, no interior de um dado sistema, é uma das características fundamentais que não podemos deixar de salientar.
A partir dos «sintomas» compreendemos porque é que a interpretação das obras de arte não é meramente uma operação automática ou linear, como acontece no caso da interpretação das obras científicas. Antes de mais, porque a ciência prescreve, sem restrições, o que é relevante ou não para a identificação e interpretação dos seus símbolos e dos respectivos referentes, ignorando completamente o que se situa para além dessa restrita fronteira. Ao invés, na arte, nada pode ser, em princípio, considerado como insignificante, contingente ou sem sentido. Requer-se o máximo de perspicácia, de sensibilidade, de emoção e de finura interpretativa (propriedades que a ciência descura, embora não estejam propriamente ausentes do processo de construção das suas “versões-de-mundo”), de molde a que seja possível detectar a textura da matéria, a especificidade de uma pincelada (não podemos confundir a pincelada de Van Gogh com a de Miró, ou com a de Rembrandt), a subtileza de uma alusão ou de uma metáfora pictórica, ou a multireferencialidade de um quadro ou de um poema. Esta diferença abissal é particularmente resultante do facto de os símbolos científicos serem semanticamente austeros e de os símbolos estéticos não enfermarem desta restrição, não colocando, por isso, qualquer tipo de freios ao eventual prosseguimento ilimitado da sua interpretação.
É precisamente por esta ordem de razões que os cientistas se sentem perfeitamente a vontade para afirmar de um modo geralmente peremptório que na arte não há progresso cumulativo, nem acordo entre os espíritos, ou que a arte não é cognitiva, características ou propriedades que reivindicam como exclusivas da ciência.

§ 3. As «Amostras» e a Teoria da Exemplificação

«As obras de arte, contudo, caracteristicamente ilustram em vez de nomear ou descrever espécies relevantes. Mesmo onde os âmbitos de aplicação – as coisas descritas ou representadas pictoricamente – coincidem, as características ou espécies exemplificadas ou exprimidas podem ser muito diferentes».[6]
Nelson Goodman

«Considere-se, de novo, uma vulgar amostra de tecido no catálogo de amostras de um alfaiate ou de um estofador. É improvável que seja uma obra de arte, que represente pictoricamente ou exprima alguma coisa. É simplesmente uma amostra – uma simples amostra. Mas de que é ela uma amostra? Da Textura, da cor, da tecedura, da grossura, das fibras de que é feita...; tudo o que importa nesta amostra, somos tentados a dizer, é que ela foi cortada de uma peça de tecido e tem as mesmas propriedades do resto do matéria.»

Nelson Goodman


A tese central sobre a exemplificação, que permite e legitima as nossas interpretações, pode ser analiticamente enunciada do seguinte modo: um dado objecto “X” exemplifica, ou é uma amostra de uma etiqueta “Y” quando e somente quando (“X” é denotado por “Y”) & (“X” refere “Y”). Ou, por outros termos, a exemplificação é a relação simbólica que acontece quando um objecto denotado por um determinado símbolo funciona, por seu turno, como um símbolo que refere aquele que o denotou. Assim, aos símbolos a funcionarem denotativamente, Goodman chama «etiquetas» e aos símbolos que funcionam exemplificativamente, chama «amostras». É interessante verificar a este respeito que a relação de exemplificação é não-simétrica, não-assimétrica, não-transitiva, não-intransitiva, não-reflexiva ou não-irreflexiva, consoante os casos aos quais é aplicada. De qualquer modo, o campo de uma relação de exemplificação é sempre um sistema simbólico determinado, nunca estando constrangida por qualquer restrição de natureza ontológica, na medida em que Goodman parte do pressuposto de que nenhum objecto é intrinsecamente um símbolo de qualquer espécie, mas apenas por restrições de ordem funcional, a saber:
a) Para exemplificar, um objecto tem de estar a funcionar como símbolo;
b) E é necessário que satisfaça plenamente a etiqueta que exemplifica, quer dizer, que possua as respectivas propriedades.
Ora, como um objecto pode ser denotado de múltiplas maneiras, daqui decorre que pode possuir múltiplas propriedades e, por extensão, exemplificar qualquer delas. Porém, como só pode exemplificar, não todas as propriedades, mas apenas aquelas de que é símbolo, as quais se encontram dependentes do sistema de que faz parte. Por isso, o alcance simbólico de uma amostra está sempre dependente do contexto que lhe está subjacente.
A exemplificação não é, porém, um processo de simbolização apenas aplicável à arte. O seu domínio de aplicação é extremamente vasto: intervém na maior parte das nossas práticas cognitivas, seja qual for o domínio do conhecimento a que nos estejamos a referir. No seu uso vulgar, não apenas as amostras, mas também os exemplos, os exemplares e os modelos são símbolos exemplificativos. No que concerne especificamente à arte, para onde Goodman transpõe estas noções correntes, podemos simplesmente invocar o seguinte princípio: o que quer que seja exibido por uma obra de arte é, seguramente, exemplificado por ela (o quadro que exibe “libertação” é um símbolo exemplificativo da “libertação”, no sentido em que, “remate para”, “exibe”, “mostra”, põe em foco a “libertação”, característica/propriedade mais relevante apresentada pelo quadro em função do sistema simbólico a que pertence)[7].
Os símbolos exemplificativos, uma das noções centrais da teoria da exemplificação exposta por Goodman, desempenham, por conseguinte, funções importantíssimas no seio da sua filosofia da arte:
a) A de nos facultarem acesso epistemológico às propriedades ou características de que são símbolos e, por meio destas, a outros objectos que as compartilham;
b) E, assim, adquirir conhecimentos através de amostras consiste tão-só em solucionar problemas quer de indução quer de projectabilidade, isto é, decidir sobre que circunstâncias as características exemplificadas por uma amostra ou exemplar, podem ser projectadas com sucesso para outros caos.
c) Por conseguinte, torna-se possível inferir que a actividade cognitiva desenvolvida através de símbolos exemplificativos implica necessariamente a intervenção de diversas operações, entre as quais devemos destacar:
1. Decidir se a amostra é correcta;
2. Identificar as propriedades exemplificadas;
3. Determinar sobre que objectos devem estas ser projectas;
4. Avaliar a sua adequação aos objectos.
Infere-se das teses anteriores, que uma obra de arte só é correcta, como símbolo exemplificativo, sempre que satisfaça os objectivos delimitados pela simbolização exemplificativa, ou, por outras palavras, sempre que as propriedades exibidas possam ser projectadas, com êxito, de molde a alargar a nossa compreensão em novos domínios;
E, por último, que os critérios de que dispomos para avaliar a correcção de um símbolo exemplificativo restringem-se, necessariamente, aos seguintes pontos:
a) Amostra bem tirada;
b) Acordo entre as amostras;
c) Projectabilidade;
d) Adequação aos objectivos;
Verificamos, pois, que todos estes critérios se aplicam a todas as obras de arte, quando funcionam exemplificativamente e que as cinco teses enunciadas são, invariavelmente, comuns a todos os símbolos exemplificativos. É na arte, no entanto, que a exemplificação se encontra no centro de qualquer construção de mundos, embora se apresente como fundamental quer na ciência quer na vida de todos os dias. As obras de arte são exemplos, modelos, exemplares, amostras ou, como Goodman prefere sublinhar, as obras de arte são «amostras do mar»[8].

Isabel Rosete
Março de 2008


Notas:
[1] Nelson Goodman, op. cit., p. 114.
[2] É claro para Goodman que existem características específicas do funcionamento simbólico estético que se distinguem do funcionamento simbólico específico da ciência ou de qualquer outra forma que assuma o saber humano ou o funcionamento prática vida comum. Distingue cinco sintomas, já por nós referidos no segundo parágrafo deste ponto: a densidade sintáctica, a densidade semântica, a saturação relativa, a exemplificação, a referência múltipla e complexa. A este propósito escreve Goodman: «A questão de saber exactamente que características distinguem ou são indicadoras da simbolização que constitui o funcionamento de algo como obra de arte pede um estudo cuidadoso à luz da teoria geral dos símbolos. Isso é mais do que aquilo que posso aqui empreender, mas arrisco a hipótese de que há cinco sintomas do estético: (1) a densidade sintáctica, onde as diferenças mais finas constituem, em certos aspectos, uma diferença entre símbolos – por exemplo, um termómetro de mercúrio não graduado em contraste com um instrumento electrónico de leitura digital; (2) a densidade semântica, quando os símbolos são fornecidos por coisas que se distinguem entre si pelas mais finas diferenças em certos aspectos (...); (3) a saturação relativa, onde, comparativamente, muitos dos aspectos de um símbolo são significativos (...); (4) a exemplificação, onde um símbolo, quer denote ou não, servindo como amostra de propriedades que possui literal ou metaforicamente; (5) a referência múltipla e complexa, onde um símbolo realiza várias funções referenciais e interactivas, algumas directas e algumas mediadas por meio de outros símbolos.». Embora o autor não hierarquize os sintomas entre si, a exemplificação parece-nos ser, entre os sintomas – se tivermos em consideração o papel desempenhado por este processo de simbolização na filosofia da arte de Goodman – o único que o autor considera como condição necessária para que um objecto esteja a funcionar como obra de arte, em virtude da impossibilidade, já assinalada, de se encontrar uma obra de arte que, no seu funcionamento habitual, não exemplifique de qualquer forma que seja.
[3] Cf. Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, p. 116
[4] Ibidem.
[5] Como observa pertinentemente Carmo D’Orey a propósito desta problemática, «a teoria de Goodman é relativista, mas não é subjectivista. É um relativismo objectivo ou contextual ou, mais precisamente, semiótico, uma vez que tem a ver com o funcionamento dos objectos quando construídos como símbolos. Efectivamente, embora qualquer objecto ou acontecimento possa funcionar como símbolo estético e, portanto, como o. a., ou funcionar como tal para umas pessoas e não para outras, ou em algumas circunstâncias e noutras não, o que simboliza e como simboliza depende das suas propriedades e não dos estado psicológico do sujeito da experiência estética.» (Carmo D’Orey, op. cit., p. 651 - 652).
[6] Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, p. 49.
[7] Cf. Carmo D’Orey, op. cit., p. 86.
[8] Como explica, a propósito, Carmo D’Orey, «com esta expressão, só em parte metafórica, Goodman quer dizer duas coisas: que são símbolos que simbolizam exemplificativamente e que o seu objectivo é facultar-nos um conhecimento de um todo muito amplo e complexo ao qual não temos acesso de outra maneira». Ora, «como todas as versões-de-mundos, as da arte não partem do nada (...) uma obra de arte é obtida a partir de uma visão do mundo do artista a qual, por sua vez, é construída a partir de outras visões e versões anteriores, de outros artistas, de cientistas ou das percepções e da vida de todos os dias. Faz então sentido, para manter o paralelismo com as outras amostras, dizer que as o. a. são obtidas a partir de um todo que é uma visão do mundo de um artista e que são para ser projectadas para essa visão, à qual todos nós temos doravante acesso?» A esta pergunta assaz pertinente, pela qual Carmo D’Orey questiona um dos pontos/teses centrais da filosofia da arte de Goodman, podemos, segundo a autora responder afirmativamente, «desde que reconheçamos que se há um mundo do qual uma o. a. é amostra esse mundo não é algo independente ou pré-existente a todas as visões e versões. É o mundo organizado por categorias e famílias de categorias exemplificadas pela referida o. a. Não pode, por conseguinte, ser conhecido , nem mesmo pelo artista, até que tenha sido materializado pela produção da o. a. Uma vez realizada, se é correcta, é projectável para a versão-de-mundo de que é amostra e só então essa versão existe para o artista e para nós.» E é, então, deste ponto de vista que se pode colocar, correctamente o problema da criação artística que não nos parece constituir uma das preocupações de Goodman. No entanto, e na sequência da linha argumentativa que estamos a seguir, podemos, agora, considerar que «este é o sentido mais exacto em que podemos dizer que o artista é um criador. Na produção de uma amostra que constitui a única via de aproximação a um mundo até aí desconhecido (e criar é isso mesmo: dar a ver, a-presentar um mundo desconhecido). A nós, interpretes, cabe depois a tarefa de explorar esse mundo.» (Cf. Carmo D’Orey, A Exemplificação na Filosofia da Arte de Nelson Goodman, Dissertação apresentada à Universidade Clássica de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Filosofia, pp. 563 - 564)


A Tarefa da Filosofia, por Waldomiro José da Silva Filho
Universidade Federal da Bahia – UFBA

Qual é a tarefa da filosofia? Esta, no entanto, não é uma pergunta que se possa fazer antes de lidarmos com temas, problemas e argumentos filosóficos; não é possível explicar os procedimentos, métodos e técnicas filosóficas sem que um problema filosófico esteja em questão. Pois a filosofia (assim como a ciência) não é um corpo de saberes ordenados que podem ser trasmitidos: é, outrossim, uma prática... o exame das crenças enquanto crenças, dos significados enquanto significados.
Para nós, na vida comum, prática política e religiosa, inúmeros discursos funcionam como se apontassem para as coisas como elas são realmente. Wittgensteins certa vez escreveu: "Temos agora uma teoria (...) mas não se nos apresenta como uma teoria. O que caracteriza esta teoria é o fato de olhar para um caso especial e claramente intuitivo e dizer: 'isto mostra como as coisas são em cada caso; este caso é exemplar para todos os outros casos' --- 'Claro! Tem de ser assim', dizemos nós, e ficamos satisfeitos. Chegamos a uma forma e expressão que se nos afigura como óbvia. Mas é como se tivéssemos agora visto sob a superfície" (Zettel, par. 444). Há momentos em que todos nós devemos assumir que nossas crenças (gnoseológicas e morais) não são crenças, mas fatos que não necessitam de exame (exatamente porque não poderiam ser de outro modo senão assim), são evidentes, certos... reais. Há crenças, imagina-se, que não são produtos da imaginação e, por isso, não podem mudar ou falhar: as coisas são assim, não poderiam ser de outro modo; é evidente!
Este entusiasmo é ainda mais frenético quando estamos falando não sobre mesas e coisas banais, mas sobre o próprio modo de conhecermos, o modo da construção ou aquisição de crenças verdadeiras, o sentido primeiro das coisas, o fundamento geral da moral; ou seja, quando pensamos que estamos filosofando.
A filosofia, como a penso, principalmente no horizonte da guinada lingüística tem a tarefa de colocar as crenças, as teorias e os significados no único lugar que lhes cabe... exibindo-os, não mais, não menos, como simples crenças, teorias e significados. Ela combate nosso entusiasmo epistemológico e moral e não substitui uma crença má (falsa) por uma crença boa (verdadeira). Como dizia Peirce, não é honesto, por parte de um filósofo, tentar desfazer deliberadamente as crenças de ninguém. A construção e a mudança de crenças é uma tarefa de mulheres e homens (que nao são filósofas e filófosos).
A única contribuição a filosofia para a civilização é negativa: não há crenças verdadeiras nem crenças que podem vir a ser verdadeiras porque estamos mais próximos (com estas crenças) da realidade; existem crenças porque dominamos o sentido da verdade (sabemos o que necessário para uma crença ser verdadeira); as crenças são a medida do que tomamos por realidade.
Sim, realmente, há um mundo objetivo, real e concreto, mas jamais saberíamos disso se não estivéssemos conversando a propósito do mundo com outros que suponho serem como eu, mesmo que sejam de outra etnia. Mas para conversar sobre o mundo devemos dominar o sentido de falar com verdade sobre o mundo. A verdade (seja lá o que podemos endenter por ela) é a condição da conversa.
Há algo que não temos percebido na teoria traskiana da verdade: ela é uma teoria ponto a ponto, para cada frase de uma língua finita... Por isso não podemos definir o que é a verdade tout court. Só sabemos o que é, realmente, verdadeiro na conversa concreta com outros como nós, pois para ser compreendido pelo outro e para compreender o que o outro diz devo dominar as condições objetivas em que o que se diz é dito com verdade.
Há a não-verdade? Claro, mas para estar errado ou cair em falsidade, a mulher e o homem devem já estar de acordo com toda a humanidade em muitos aspectos.
Talvez, corrijo-me agora, a filosofia contribua ainda com outro coisa: a defesa irrestrita da democracia e da liberdade objetiva das mulheres e dos homens (seja lá o que isso signifique); o horror absoluto contra qualquer censura ou tortura. Por isso, penso, a teoria da ação é para onde desagua a filosofia contemporânea... enfrentar o dilema kantiano entre o determismo físico e a liberdade da vontade. O mundo "causa" nossas crenças, mas não as justifica, porque no mundo não há verdade (nem falsidade). Só nossas crenças (verdadeiras) podem justificar nosso agir e, no mais das vezes, já dizia Aristóteles, não podemos agir contra nossas crenças. Agimos contra as melhores razões e contra nossas melhroes crenças apenas numa situação, quando queremos mudar e inventar nossos mundos, donde a beleza indelével da poesia, da política e da religião.
Spinoza escreveu na Ética que "a verdade é norma de si mesma e da falsidade [veritas norma sui et falsi est]". É esta a verdade que interessa à filosofia; não a verdade de fato, mas a verdade patente... "la norme du vrai".
Salvador, 4 de outubro de 2001

PARA QUÊ A FILOSOFIA?

Para quê Filosofia? Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irónica, conhecida dos estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.
Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata.
Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.
Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como génios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade.
Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma.
Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objectos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos correctos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.
Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correcção e acumulação de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.
Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada.
Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade económica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinarmos a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude?
O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as acções humanas?
Assim, mesmo se disséssemos que o objecto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objecto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas – o que, por que e como – permanecem. Atitude filosófica: indagar Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objectos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado.
Essas características são:
- Perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a ideia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual;
- Perguntar como a coisa, a ideia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou um valor;
- Perguntar por que a coisa, a ideia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma ideia, de um valor. A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.
Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão.
A reflexão filosófica: Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo.
A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e acções.
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as acções que realizamos nessas relações.
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos?
3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?
Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças quotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.
Filosofia: um pensamento sistemático
Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda.
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência quotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que ”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de ideias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de ideias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente.
Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas ideias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as ideias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência quotidiana.

CHAUI, Marilena. Convite a Filosofia; Ed. Ática. São Paulo, 2000.

Filosofia, Pragmatismo e Ecologia de Emergência
Do site do Filósofo
http://www.ghiraldelli.pro.br/

Aristóteles chamou os primeiros filósofos de physiologoi. Eles começaram a filosofar na Jónia, uma colónia grega que, hoje, é parte da Turquia. A preocupação daqueles pensadores era com a physis, que de modo forçado traduzimos por “natureza”. Eles não separavam, como a maioria de nós faz hoje, os elementos humanos dos elementos da Terra, como sendo uns do “âmbito social” e outros do “âmbito natural”. Hoje em dia são os positivistas e os historicistas que insistem nisso. E o fazem desde o final do século XIX. Mas nós, pragmatistas, desde William James e John Dewey até Donald Davidson e Richard Rorty, tendemos a ter um maior carinho com a visão holística dos primeiros filósofos, pois imaginamos que a distinção que podemos fazer não é entre história e natureza e, sim, entre o que é natural é o que é o sobrenatural que, enfim, descartamos.

Mas nossa posição é, de fato, próxima da dos physiologoi? Em parte. E no que nossa posição e a deles nos ajuda, hoje, a levar a ecologia a sério? É necessário conversar e reflectir. Pois o assunto não é mais “moda”, é destino.

Os physiologoi não desacreditaram dos deuses. Mas desacreditaram do sobrenatural. Colocaram os deuses juntos com os mortais, todo sob as mesmas descrições. Os deuses, uma vez entre nós, deveriam agir como nós. Ou então, que ficassem de fora de nosso mundo. Ou seja, as descrições dos physiologoi não admitiam a intervenção sobrenatural nas cadeias causais naturais. Assim, não destruíram a religião e os deuses, mas deram um basta na intervenção mágica, mítica. Quiseram estabelecer descrições do mundo como um mundo inteligível à razão humana. Eles enxergaram na physis uma parente próxima do logos. Quando Sócrates surgiu em Atenas, esse movimento de racionalização continuou. Sócrates também não destruiu a religião e os deuses. Ele promoveu, sim, uma reforma religiosa. Ele insistiu – diferentemente de todos os outros gregos e da tradição de Atenas – que os deuses não agiriam de forma não-ética, ou seja, tapeando os mortais ou lhes causando danos. Isso, para Sócrates, era agir com virtude. E ser virtuoso, nesse caso, era ser racional. Assim, Sócrates deu força para explicações nutridas pelo logos na medida em que colocou os deuses sob o controle de uma moral com certo padrão, retirando-os do comportamento idiossincrático contado nos mitos e cosmogonias. O novo ethos defendido foi, para Sócrates, aquilo que a physis foi para os physiologoi.

Assim, à primeira vista, podemos dizer que houve uma continuidade entre o pensamento dos physiologoi e o de Sócrates. Em ambos os casos, o mundo deveria ser inteligível e, sendo assim, teria de ser regrado pelo logos, pela razão. Todavia, essa continuidade foi parcial. Pois, com Sócrates, a physis não ficou em segundo plano, ela simplesmente não ficou em plano algum – ela desapareceu da filosofia. O “mundo natural”, daí para diante, passou a ser crescentemente uma preocupação de outros que não os filósofos. É claro que isso demorou para acontecer. Mas quando o Renascimento findou e entramos no que os historiadores, depois, periodizaram como sendo “a modernidade”, os filósofos foram marcados para se transformarem em especialistas em “ciências filosóficas”, e estas, por sua vez, não deveriam mais conter o estudo da natureza. No século XVIII tivemos os últimos filósofos-cientistas. No final do século XIX já não tínhamos mais esse tipo de pensador. A universidade moderna já havia instaurado senão totalmente ao menos as divisões básicas que conhecemos hoje entre os vários campos do saber humano. Assim, aos filósofos não cabia mais o interesse pela Terra. O próprio homem deixou de ser o seu organismo e, então, se havia algo nele que os filósofos ainda poderiam estudar, era a alma em sua vida individual ou coletiva. Mas nem isso ficou sob comando filosófico. No decorrer do século XX esses elementos passaram a ser objeto da psicologia, da sociologia e da ciência política. Foi o fim completo das possibilidades de um pensamento mais integrado. Os pragmatistas ficaram fora disso. Mas eles não conseguiram fazer muito, uma vez que não tiveram aliados. O “espírito da época” do século XIX ganhou muitos intelectuais no século XX. E até pouco tempo atrás ninguém duvidava que era correcto manter a divisão entre história e natureza, entre sociedade e natureza. Não à toa os estudantes aprendem, ainda hoje, em dividir as ciências em “humanas”, onde a natureza não entra, e “biológicas e exactas”, onde toda a natureza é acolhida, inclusive o organismo do homem.

Os próprios filósofos começaram a não mais entender o que ocorria no mundo da ciência e, então, eles mesmos quiseram se afastar desse tipo de conhecimento. Mantivemos nas faculdades de filosofia a disciplina “filosofia da ciência” e, no entanto, ela começou a ser feita, cada vez mais, por pessoas que conheciam vários discursos meta-científicos e, no entanto, não sabiam operar com a ciência básica, que teria de ter sido ensinada na escola de nível médio.

O pensamento ecológico do século XX quis romper com isso. Mas não teve a sorte. E quando surgiu como partido político no mundo todo (os Partidos Verdes), foi tomado pelos “desenvolvimentistas” como algo ligado ao “retrocesso romântico hippie”, algo de “gente dos anos sessenta”. Todavia, talvez possamos dizer que o esforço não foi de todo em vão. Foram os poucos “românticos” e “gente maluca” do Greenpeace que mantiveram a ideia ecológica viva. Prepararam o terreno para o que é, hoje, a nossa “consciência ecológica”. Essa consciência ecológica, agora, precisa ser ampliada e reforçada. E não se trata mais de uma “questão de princípios” e de posição filosófica, ainda que se trate, sim, disso mesmo. Agora, chegamos em uma situação que teremos de voltar a pensar um pouco como os physiologoi. E não por princípios, e sim por razões pragmáticas. Nossa vida individual está em jogo. Não é o futuro dos nossos netos que está em perigo, mas o nosso mesmo e de nossos filhos. O ex-presidente vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, que é porta-voz da ONU para questões atinentes ao “aquecimento global”, está certo: chegamos na beira do precipício.

O que a filosofia, então, pode fazer? Nós filósofos temos de voltar a entender a Terra como nossa casa. Nossa casa não é nossa pátria ou o lugar de nossa família. É Gaia. E ela parece não estar mais disposta a conviver com a nossa agressão. Caso pudermos olhar para a physis, novamente, como o estofo do logos, melhoraremos a nossa visão sobre o que está ocorrendo. Isso pode nos ajudar na segunda parte da nossa tarefa. Qual? Precisamos nos inteirar dos aspectos técnicos do “aquecimento global” e, então, montarmos argumentos pragmáticos capazes de convencer cada vez mais gente do seguinte: os efeitos devastadores do “aquecimento global” não são “ficção científica”. A fome não será ficção científica. E ela virá, inclusive, no Brasil – rapidamente. Os efeitos sobre a nossa agricultura já se farão sentir neste ano de 2007, como os furacões não previstos já mostram, para os Estados Unidos, que as coisas estão caminhando muito rápido para uma situação incontrolável.
E qual a razão de nós, filósofos, termos de entrar nessa nova militância? Ou seja, por que não entramos apenas como gente comum, que quer ver o mundo salvo? Qual a razão de termos de entrar como filósofos? É que muitos esperam de nós que tenhamos os melhores argumentos para convencer republicanos americanos, chineses e indianos que eles não podem se opor às iniciativas que a ONU quer tomar para impedir o colapso. Uma parte dos Estados Unidos, que segue Bush, se aliou aos governos da Índia e da China, para contestar a “polícia ecológica” que a ONU quer criar. É a aliança entre grandes industriais americanos e governos de dois imensos e populosos países emergentes, cuja mão-de-obra é baratíssima e, então, querem continuar a crescer na medida em que servem aos industriais americanos. Esse elo de irracionalidade pode ser quebrado? Sim. Mas não pelo lado da China e da Índia. Esses países possuem governos que farão de tudo para se manterem no poder por meio de uma política suicida do pondo de vista ecológico. A mudança de posição principal tem de ocorrer nos Estados Unidos. É ali que existe uma classe média que não se contenta em viver. Ela quer viver e quer que seus netos vivam. De todos os povos do mundo, são os americanos de classe média os que mais jogam fichas na “vida futura do país”. São eles que cultivam a ideia de plantar uma árvore para que o neto venha usufruir da sombra ou ir para a guerra para que o país, depois de muitas gerações, ainda seja uma grande pátria. Essa ideia do americano médio de longevidade da pátria pode ser a chave. Caso nós, filósofos, pudermos mostrar a essa gente que eles podem não deixar nada aos filhos e muito menos aos netos, então, talvez, eles comecem a votar em gente diferente de Bush. Eles até fizeram isso, votando em Al Gore. Mas o fato de Al Gore ganhar e não levar, já mostrou bem o quanto a democracia americana pode estar funcionando como uma plutocracia. Ironicamente, agora, tem cabido ao próprio Al Gore correr o mundo e avisar a todos que todos devem avisar os americanos de que, mais uma vez, dependemos dos Estados Unidos para nos salvarmos. E desta vez o inimigo é bem mais complexo e poderoso que Hitler. E está em todo lugar.
FILOSOFIA CLÍNICA: Sebastião Soares
ceffic@ig.com.br
Presidente da Associação Mineira de Filosofia Clínica

Em dezembro apresentamos uma conversa com Sebastião Soares, filósofo clínico mineiro, professor titular de Filosofia Clínica em Belo Horizonte. Soares tornou-se uma referência no estado mineiro, sendo muito respeitado e admirado entre os colegas.

Pergunta – Centenas de colegas pelo Brasil estão fazendo os estágios supervisionados para a obtenção do Certificado A, habilitação clínica. Quais as indicações que o senhor poderia passar a esses colegas de modo a tranqüilizar e encorajar os mesmos nessa tarefa trabalhosa?

Sebastião Soares - Os estágios supervisionados são decisivos na escolha do filósofo clínico. È o momento em que podemos conhecer, de maneira concreta e objetiva, a prática clínica, entender os procedimentos que nos levam na direção do outro e, principalmente, exercitar os nossos ouvidos para escutar. Não apenas ouvir, mas escutar de uma maneira nova, sem transformar o eco da nossa voz, no que pensamos ser a voz do outro. O estágio supervisionado nos ensina a ouvir o que o outro diz; o que ele expressa, seja verbalmente ou através de outros dados de semiose. Aprendemos a ler o silêncio e a ouvir a sinfonia dos sons do silêncio. O estágio supervisionado é um momento extremamente necessário para o exercício do escutar, uma vez que saber ouvir é um princípio determinante na prática clínica. O filósofo que não sabe ouvir, que não escuta o outro, não saberá o que fazer em muitos momentos da terapia. Não há clínica, nesta situação.
Os estágios supervisionados nos exercitam, também, para o conhecimento das possibilidades clínicas, através das pacientes e rigorosas transcrições das gravações. Para muitos alunos este enorme desafio, alguns propõem a supressão das transcrições, deve ser suprimido. Tenho ouvido reclamações com relação às transcrições e recebido sugestões para que essa prática seja suprimida dos estágios; não concordo. Esta é uma exigência didática necessária e imprescindível para a avaliação dos estágios e para a prática dos filósofos clínicos em formação. Gravações, transcrições e anotações são componentes orgânicos do processo terapêutico. Pode ser que, após alguns anos de clínica, quando a audição estiver suficientemente adequada às necessidades do ouvir, quando estiver treinada e qualificada para associar escuta, percepção e leituras de semioses, esses procedimentos possam ser deixados de lado, ainda assim tenho dúvidas. No estágio supervisionado são absolutamente fundamentais. Pela transcrição o filósofo clínico em formação percebe as nuances, as saliências e percursos literais da fala da pessoa; identifica saltos lógicos, lapsos temporais, termos padrões; analisa e divide, divide e enraíza; observa e examina a sua própria conduta durante a terapia. A transcrição rigorosamente literal é a matéria prima básica para os procedimentos terapêuticos; ela é determinante para analisar a qualidade da colheita categorial, ela define se o que foi colhido é suficiente e adequado à montagem da EP. Enfim, é o caminho para a terapia. Não há outro. Pode ser árduo e trabalhoso. Será? Dependente da medida de cada filósofo clínico em formação.
Para os meus alunos tenho recomendado a não deixar acumular transcrições. Uma vez feita a transcrição do pré-estágio, com a montagem da própria EP concluída, segue-se o estágio supervisionado. Observo que não é recomendável deixar transcrição do pré-estágio juntar-se a transcrições do estágio supervisionado. Recomendo, também, fazer a transcrição logo após a consulta ou entre um consulta e outra - essa prática serve, também, para melhorar a qualidade do planejamento clínico. Insisto para se evitar o acúmulo de fitas, especialmente fitas de partilhantes diferentes. Nesta situação, com muitas fitas acumuladas, as transcrições podem ficar ainda mais trabalhosas. A transcrição é apenas uma questão de método, um instrumento essencial para a nossa formação em Filosofia Clínica.

Pergunta – O que o senhor tem aprendido em sua atividade clínica desenvolvida no consultório?

Sebastião Soares - Lição principal: a Filosofia Clínica é prática, prática e mais prática; essencialmente práxis; determinantemente atividade concreta no processo terapêutico. Só e somente só, através da prática e pela práxis é que percebemos e compreendemos o manancial inesgotável da Filosofia Clínica; por meio da prática, permanente e cotidiana, nos habilitamos a dispor de estoques variados de procedimentos clínicos; é pela prática que refinamos a nossa intuição; é pela prática, só e somente só, que posso me afirmar como filósofo clínico.
A teoria é uma necessidade da prática, são conteúdos de um mesmo processo que se realizam e se efetivam na atividade prática. A teoria, nesta acepção, não se restringe ao estudo dos textos filosóficos, mas a busca do conhecimento multidisciplinar, a pesquisa exaustiva e constante da erudição aplicada a um fim: a qualificação do filósofo clínico. Por isto, não se trata do conhecimento diletante de muitos corredores das academias, não apenas o saber pelo saber, mas, a atualização iluminista do conhecimento espreitado por uma teleologia, ou mesmo retomando Aristóteles, o saber como fazer que tem como objeto o bem que é visado pela ação. Assim, no consultório, é decisivo saber fazer, como é importante saber porque faço.
A prática clínica nos coloca em contato com o outro, nos aproxima da verdade do outro, nos encaminha para alteridade, com todas as responsabilidades que esse movimento implica. O consultório me traz o outro, não mais como teoria dos Cadernos e dos demais textos de apoio, mas um outro de carne e espírito, de sonhos, desejos, apetites, medos, angústias e inquietações; a presença desse outro, que em muitos momentos ressoa o eco do outro que sou eu, me vem, a princípio e a priori, como uma vastidão cósmica incognoscível, do qual nada posso dizer, ainda. O que me espera frente a esse outro? O que esse outro significa quando me olha, quando me espreita, sisudo ou sorridente? Uma crítica, uma ironia, uma dúvida? Afinal, quem é esse outro? Não há teorias que possam responder, prontamente. Só mesmo a prática clínica, atenta, recheada de carinho e respeito, será capaz de me abrir o caminho em direção ao ser do outro. Aprende-se que o atendimento clínico, nem sempre, é tranqüilo como água de poço.
Com a atividade clínica no consultório ou nos ambientes nos quais ocorre interseção, aprendi que a Filosofia Clínica, construção genial de Lúcio Packter, por suas evidências terapêuticas, funciona. Sendo ainda uma ave que levanta vôo no amanhecer, a Filosofia Clínica revela-se, no consultório, como uma possibilidade aberta que responde, de forma positiva, aos seus propósitos e objetivos. É uma prática terapêutica com resultados mensuráveis no sentido de levar bem-estar e alívios existenciais às pessoas que a procuram; confirma-se, também, como possibilidade para que muitas pessoas componham ou recomponham os seus itinerários existenciais.
O consultório reafirmou, sobretudo, que o filósofo clínico, para ser digno da sua missão, deve ser absolutamente ético e honesto, na compreensão de que a sua atividade é exercício concreto de um humanismo demarcado pelo respeito e carinho à pessoa com a qual mantém-se em interseção.

Pergunta – Quais os projetos para Minas Gerais?

Sebastião Soares - Em Minas Gerais, em razão do trabalho pioneiro do professor Hélio Strassburger, a Filosofia Clínica se instalou em várias regiões. Em Belo Horizonte, Divinópolis, São João Del Rei e Uberlândia há novas turmas em andamento, com alunos de várias cidades. Há, no Estado, vários filósofos clínicos com Certificado A e muitos em fase final do estágio supervisionado. Neste sentido pode-se afirmar que a Filosofia Clínica é uma realidade inserida na EP das Minas Gerais. Precisamos, com isso, aumentar o intercâmbio entre os filósofos e os estudantes de Filosofia Clínica. Este será um dos objetivos da Associação Mineira de Filosofia Clínica- AMFIC para a qual fui eleito presidente, no dia 01 de dezembro.
Inicialmente, a nova diretoria da AMFIC pretende organizar as atividades da Associação no Estado, criando coordenadorias regionais e incentivando a criação de centros nas cidades onde há turmas em formação.
Vamos realizar trabalho de divulgação da Filosofia Clínica através de boletins mensais e um jornal semestral, além de participações e inserções nos meios de divulgação. Estamos planejando a realização de workshops em três universidades, além de seminários específicos para os filósofos clínicos com certificados A e B e alunos que estejam fazendo estágio supervisionado.
No próximo ano vamos realizar programas de qualificação de professores de Filosofia Clínica em Belo Horizonte, Divinópolis, São João Del Rei e, ao mesmo tempo, vamos manter acompanhamento junto a todos os filósofos clínicos para avaliar, contribuir e participar da melhoria da qualidade do atendimento terapêutico. No mês de julho do próximo ano realizaremos um seminário da Comissão de Ética com o objetivo de verificar como está o atendimento clínico, as dificuldades e os problemas que podem prejudicar o trabalho clínico.
Ainda em 2002, junto o Centro de Filosofia Clínica de São João Del Rei, projetamos a realização da Semana Nacional da Filosofia Clínica com exposição de livros, debates, apresentações de casos práticos, workshops, entre outras atividades.
Estamos trabalhando com vistas a estabelecer parcerias com universidades, no Estado, para oferecer Filosofia Clínica em nível de pós-graduação. Está em análise pelo Instituto Packter um convênio com a Universidade Newton Paiva, há contatos e entendimentos com outros dois centros universitários com a mesma finalidade.
Também está em andamento a realização de parceiras e convênios para estágios supervisionados em hospitais, escolas, sindicatos e empresas. As primeiras experiências são realizadas com escolas estaduais de São João Del Rei.
Pretendemos, em breve, inaugurar a página da AMFIC na Internet.

Pergunta – No seu modo de entendimento, para onde caminha a Filosofia Clínica?

Sebastião Soares - Indagar para onde caminha a Filosofia Clínica já demanda um exercício de futurologia. Acredito ser possível examinar o que é a Filosofia Clínica hoje e, a partir daí, extrair indicativos e estabelecer nexos causais de possibilidades futuras. A Filosofia Clínica é um campo imenso de possibilidades que se consolida a partir da sua afirmação real e concreta como alternativa terapêutica.
Assim pensando, em muitos momentos fico a imaginar a solidão do filósofo Lúcio Packter buscando respostas e raízes nos seus inúmeros recortes de cartolina, nos demorados e exaustivos testes de colheita categorial e montagens de EPs, nas incontáveis horas de gravação, nas diversas interações dialógicas experimentais e até mesmo nos vários encontros solipsísticos com personagens literários. Angústias, alegrias e inquietações de um jovem filósofo comprometendo-se com os sofrimentos do outro, buscando entendimento para as inquietações do homem, repondo as bases de uma novo humanismo. Às vezes imagino essas persistentes escavações à procura das fundamentações e, de repente, a insatisfação diante de tanto material acumulado. Uma nova busca marcada pela insatisfação frente ao que produziram e produzem outros terapeutas e outras terapias. O caminho e a decisão de ancorar essa pesquisa no solo extenso da filosofia, desde a sua remota emergência até as contribuições mais recentes, tudo isso me faz pensar os caminhos da Filosofia Clínica. Das pesquisas iniciais, das primeiras suspeitas de que esse era um caminho possível; da suas manifestações públicas iniciais, da primeira turma em Porto Alegre e do seu espraiamento pelo Brasil. Quanto caminho percorrido.
Com certeza a Filosofia Clínica já ultrapassou algumas etapas. Hoje ela se consolida como a proposta de uma nova terapia revolucionária; demonstra evidências terapêuticas nos vários consultórios espalhados pelo País; atravessa as fronteiras das universidades; se oferece como alternativa de pós-graduação e ensaia a superação das fronteiras nacionais ao estabelecer diálogos com filósofos de outros países. Há, nesse perpassar histórico, a certeza de que se abriu um novo horizonte para os filósofos; de que está em efetividade a realização prática da filosofia.
Sim, a Filosofia Clínica faz barulho, mas, se o caminho se faz no caminhar, ela ainda é a árvore que pode virar floresta. Uma possibilidade, um campo de possibilidades, justificado por várias probabilidades. Dentre estas a coragem e ousadia em recusar o lugar comum das tipologias e de se afastar da náusea tedioso das doenças mentais confutadas com os juízos preconceituosos das normalidades. O novo humanismo da Filosofia Clínica pressupõe o exercício de uma nova terapia cujo centro é o respeito a alteridade, com uma recusa radical às acrobacias terminológicas da des-razão. Com isso a Filosofia Clínica instaura um novo registro que não se funda em imputações alienistas, ela oferece o universo aberto da Estrutura de Pensamento em contraponto ao horizonte fechado das tipologias. Com todas as implicações decorrentes. A pessoa como ela é, na sua medida, na sua singularidade existencial, na sua forma e conteúdo, únicos e específicos.
A Filosofia Clínica se propaga e se difunde como uma construção coletiva, aberta às inúmeras possibilidades do seu caminhar. Este é o percurso que aponta o caminho da Filosofia Clínica, uma perspectiva histórica para um universo de possibilidades, cujo limite será o seu engessamento e a sua cristalização. Estes são os males a evitar. Estes sãos os nossos riscos. Petrificação e dogmatização fundamentalista são incompatíveis com a proposta criada por Lúcio Packter. As evidências terapêuticas da Filosofia Clínica e a sua construção teórica são diretamente proporcionais à sua capacidade de manter-se como universo aberto, estão em consonância com a amplitude da sua transparência. Já consolidada, até agora, como arte terapêutica, a Filosofia Clínica ainda é o amanhecer de uma história que será construída por todos nós, desde que não sejamos os absolutos da verdade nem os proprietários do saber.

Pergunta – O senhor foi aluno de Helio Strassburger, filósofo clínico renomado em muitos estados. Como foi a experiência de ter trabalhado com Strassburger

Sebastião Soares - O professor Hélio Strassburger é, antes de tudo, um semeador; ele cultiva a Filosofia Clínica como amor e a ela se entrega, como doação e oferta. Este é o seu projeto, que se confunde com a sua própria vida. O “tio Helinho”, no designativo carinhoso de muitos dos seus alunos e alunas de Minas Gerais, espalha a Filosofia Clínica pelo Brasil. A sua prática clínica o torna referência, seja no consultório ou nas salas de aula. Como professor, sempre encontramos nele o estímulo e o incentivo. De acordo com o professor Hélio, os horizontes da Filosofia Clínica são sempre radiosos. Claro, dependente do esforço, da dedicação e da doação de cada um. Na nossa convivência, ele é o porto onde podemos ancorar as nossas dúvidas. Ao professor Hélio Strassburger devoto profundo respeito e gratidão.
COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E MULTIMÉDIA:
O LUGAR DO «ENSINO PARALELO», por Isabel Rosete

1. Apresentação

Privilegiando-se, no contexto situacional da temática global da comunicação, a dimensão específica da denominada «comunicação escolar» e no seio desta as dimensões da confirmação e da infirmação, fazendo-se convergir esta análise para o processo de ensino-aprendizagem, seria deveras redutor – face ao estado actual de desenvolvimento das tecnologias e dos processos informativos perfeitamente ao alcance de todos nós e cujo poder de persuasão é inegavelmente instalado nas mentes dos jovens errantes – não reservar um momento da nossa reflexão geral sobre a Educação à abordagem desta matéria, tendo especialmente em consideração a influência da imagem e dos meios de comunicação audiovisual no âmago da educação escolar propriamente dita, pelo menos aos níveis mais notórios e imediatos que esta problemática enferma.

2. A “escola normal” e a “escola paralela”: da aprendizagem pelo texto oral/escrito à aprendizagem pelo texto icónico

A chamada cultura audiovisual, que se tem situado sempre no primeiro lugar de todos os “topes” dos meios de comunicação de massa é, inegavelmente, transmitida por um tipo de imagem particularmente concebido e em cuja concepção se pesam todos os pormenores, com o intuito de alcançar a maior persuasão e eficácia junto do espectador, a qual é deveras mais forte e tremendamente mais influenciável não só do que as palavras, mas também do que as ideias que elas possam transmitam, por mais brilhantes e sugestivas que sejam, quer em termos do respectivo conteúdo, quer no que concerne ao respectivo modo de apresentação.
O primado da visão, em relação aos restantes órgãos dos sentidos, sempre foi destacado, desde a Grécia Clássica, mesmo pelos filósofos mais vincadamente idealistas/racionalistas, como é o caso de Platão (427-347 a.C.). Esta tese é, agora, cada vez mais obvia, tendo surtido, como é do conhecimento comum, alterações ao nível dos processos de desenvolvimento da inteligência, consubstanciados num aumento progressivo e determinante da capacidade intuitiva, em função de um certo empobrecimento e até mesmo detrimento da capacidade reflexiva, que, por exemplo, a cultura da leitura e da escrita naturalmente exige.
Importa definirmos, antes de procedermos à definição e análise do conceito de imagem, o que entendemos por inteligência, por intuição e por reflexão, recorrendo a leituras filosóficas e psicológicas, uma vez que a compreensão destes conceitos é fundamental, não apenas para a determinação adequada do processo de ensino-aprendizagem, como para o entendimento do funcionamento dos processos mentais do educando e, por consequência, para a delimitação, por parte do docente, do tipo de comunicação/categorias comunicacionais mais eficazes, face à caracteriologia apresentada por cada aluno/grupo-turma.

3. Inteligência e multimédia: do reflexivo ao intuitivo

Devemos distinguir, num primeiro momento, as expressões “conceito de inteligência” e “natureza da inteligência”. Relativamente à primeira, e tendo em consideração a sua etimológica (do latim “intelligentia”), o termo “inteligência” significaria apenas a “qualidade do que é inteligente” (do latim intus = inter + legere = eligere), ou seja, “ler dentro”, “escolher entre”, “discernir”, remetendo assim para aquele que tem a capacidade de penetrar nas coisas, captar a sua intimidade ou a sua essência. Porém, e em virtude dos variadíssimos equívocos da linguagem psicológica e filosófica, o termo aparece como sinónimo de entendimento, de intelecto, de razão, de ser espiritual, para designar funções cognitivas, incluindo as sensoriais.
No que concerne à “natureza da inteligência” propriamente dita, e tendo por referencial básico os aspectos mais recentes da investigação científica, destacam-se duas linhas fundamentais: a psicotécnica e a psicológica. A primeira debruça-se sobre o estudo da inteligência pelo cálculo factorial e pela inteligência medida pelos testes; na segunda linha, encontramos a “escola funcional”, que descreve o conceito como mecanismo de adaptação ao meio, e a “escola gestaltista” que tenta explicá-lo em termos do conceito de “organização”.
Não obstante o conceito de “inteligência” ainda permanecer basicamente indefinido, entendemo-lo, grosso modo, como o “poder” ou a “força” do raciocínio; como a “energia” ou a “capacidade de resolver problemas”[1]. Segundo esta perspectiva, consideramos que a inteligência integra, pelo menos, três componentes fundamentais:
a) a capacidade de adquirir e acumular experiências, a qual comporta a aptidão que permite compreender as relações entre os elementos de uma mesma situação;
b) o modo de aplicar útil e racionalmente as experiências adquiridas e retidas na memória;
c) a capacidade de adaptação às múltiplas situações emergentes e aos respectivos elementos, de molde a realizar os próprios fins determinados e a resolver os eventuais problemas que se oponham à obtenção desses mesmos fins.
A inteligência é integrada por duas funções essenciais: uma adaptadora e inovadora; outra ordenadora e reguladora. Assim concebemos a «inteligência como um dinamismo psíquico ordenado a conhecer a consciência do mundo, a criar um comportamento universal e individual e a influir na consciência do mundo». A explicação mais detalhada desde dinamismo essencial à vivência e à sobrevivência de todo o ser humano, indica-nos que as suas funções associadas encontra-se:
a) na aquisição de experiências, entre as quais se destaca a atenção, a capacidade de retenção, a distinção e o treino;
b) na ordenação das experiências, onde encontramos mecanismos como a combinação e a crítica;
c) na conservação das experiências, onde se destaca a memória;
d) na aplicação das experiências, face à qual são accionados os mecanismos de reconhecimento de situações, o juízo, a aplicação do processo adequado e o sentido comum.
Digamos que a inteligência se apresenta – partindo-se de uma tentativa de conjugação dialéctica das múltiplas e quiçá paradoxais teses sobre este conceito, cuja cabal definição continua a escapar aos maiores especialistas neste domínio – como «o conjunto de todas as funções que têm por objecto o conhecimento, ou seja, a sensação, a associação, a memória, a imaginação, o entendimento, a razão e a consciência»[2].

4. A intuição e multimédia: do racional ao empírico

Apesar das dissemelhantes definições sobre este conceito, entendemos por “intuição”: a visão directa e imediata de uma realidade ou a compreensão directa e imediata de uma verdade. Um raciocínio deste tipo elimina elementos intermediários ou de ligação entre proposições e juízos. Assim, e por extensão, a característica fundamental da inteligência ou do raciocínio intuitivo é a imediatez.
Poderemos usar este conceito para designar diferentes procedimentos do acto de conhecer, embora em todos se mantenha a característica da imediatez, quer nos situemos ao nível da “intuição empírica” quer nos mantenhamos ao nível da “intuição racional”.
A “intuição empírica” é aquela que nos conduz, numa primeira visão, ao “conhecimento” do que se julga ser essencial num objecto dado na sua exterioridade.
A “intuição racional”, por sua vez, traduz-se no conhecimento da evidência, seja esta de que natureza for. Pode aplicar-se quer à verdade antevista enquanto tal, quer a um objecto especial do pensamento, previamente considerado ou não como transcendental. Porém, permanece a questão de saber que tipo de intuição nos dá acesso não só aos conceitos, mas também às relações estabelecidas entre eles. Não obstante todas as investigações efectuadas nesta área, esta questão continua a ser uma das controvérsias da psicologia e da filosofia do conhecimento.
No âmbito desta conceptualização distinguimos, segundo as características apresentadas, a capacidade intuitiva do sujeito em função da utilização, pelo mesmo, de uma “intuição empírica” ou de uma “intuição racional”. No entanto, deveremos frisar que a cultura da imagem em que vivemos, contrariamente à cultura do livro, desenvolve substancialmente a capacidade de “intuição empírica” em detrimento da “intuição racional”, uma vez que o predomínio do sentido da “visão sensitiva” supera o da “visão racional” dos objectos·.

5. Reflexão e multimédia: em busca de um outro modo de “Pensar”

Por “reflexão”, e consequentemente por capacidade ou “raciocínio reflexivo”, entendemos «a volta atenta do pensamento consciente sobre si próprio que, tanto sob um ponto de vista psicológico como ontológico constitui a sua principal manifestação»[3].
Compreendida num sentido puramente psicológico, a reflexão consiste no «abandono da atenção ao conteúdo intencional dos actos para se voltar sobre os próprios actos». De acordo com esta perspectiva, a reflexão apresenta-se como uma «espécie da direcção natural dos actos», criando-se, deste modo as «condições necessárias para a reversão completa da consciência e a consecução da consciência de si mesmo».
Extrapolando-se, a este nível, as fronteiras da Psicologia, ligamo-nos a uma compreensão de pender gnoseológico, por nos permitir, embora sempre em conjugação com a perspectiva psicológica, uma análise mais completa de todas as questões concernentes aos actos propriamente reflexivos·.
Como afirmámos no ponto anterior, uma vez que o predomínio da visão e da linguagem da imagem têm proporcionado o desenvolvimento substancial da “intuição empírica” em função de um certo detrimento da “intuição racional”, torna-se notório que a capacidade reflexiva das novas gerações é cada vez mais diminuta: a esfera do imediato e do instantâneo tem vindo a substituir o domínio de um pensar autêntico por atrofiar, em certa medida, essa capacidade essencial da mente humana de penetrar no interior das coisas e de captar a sua essencialidade, de perscrutar o sentido mais profundo das múltiplas significações que o universo ontológico, linguístico e conceptual nos oferece a cada momento.
Talvez encontremos, por intermédio de uma reflexão conjugada destes três conceitos em análise, a explicação que nos permita compreender porque é que os alunos não são mais capazes de interpretar (tendo presente o sentido genuinamente hermenêutico que atribuímos a este termo) um simples artigo de jornal, embora compreendam de imediato o desenrolar da história de um banda desenhada; porque são incapazes de interpretar um dos textos mais “elementares” da literatura contemporânea, embora descodifiquem facilmente um “slogan” publicitário.
A imediatez que esta civilização multimédia tem feito despoletar a um ritmo verdadeiramente frenético, coarcta a emergência efectiva da capacidade de abstracção que nos permite chegar ao conceito, aos domínios do universal e do essencial, em prol do instantâneo e do superficial. Por estas razões, urge a edificação da consciência, quer no aluno quer no professor, de que a imagem, o “slogan” publicitário, a banda desenhada, o cinema, o vídeo, etc., também são um texto e, como todo e qualquer texto, devem ser sempre sujeitos a um rigoroso exercício hermenêutico, o qual resulta de um determinado tipo de aprendizagem que a escola e o professor deve promover a cada momento.
Em virtude da instalação definitiva da cultura da imagem, a linguagem oral e escrita passa a ser secundarizada por outro tipo de linguagem que a imagem eficazmente produz: a icónica. E esta linguagem requer um outro tipo de aprendizagem ao nível dos processos mentais e dos conteúdos que a imagem por si mesma encerra, a qual, segundo o nosso ponto de vista, se deve articular com a aprendizagem da linguagem oral e escrita, igualmente considerada ao nível dos processos mentais e dos conteúdos nela imbricados. Esta é a realidade mais evidente do quotidiano escolar perante a qual a educação jamais se poderá alhear.

6. O texto como imagem

Definir o termo “imagem” como uma reprodução exacta ou representação analógica de qualquer objecto. Se preferirmos a via etimológica, diremos que o termo designa, a um tempo, a função de representação e a categoria da semelhança, pois o verbo latino “imitor” (do qual deriva o termo “imagem”), significa “reproduzir por imitação”. Todavia, deveremos ser mais precisos e evitar toda a ambiguidade possível que estas aproximações conceptuais produzem.
Segundo Fulchignoni (1969), a imagem pode ser concebida, numa primeira leitura, como o dado sensorial do órgão visual, isto é, como a percepção directa do mundo exterior no seu aspecto mais imediato, visível e luminoso e, numa segunda leitura, como a representação subjectiva desse mundo exterior que extravasa a componente estritamente sensorial. Se nos situarmos, por outro lado, no ponto de vista da linguagem da imagem, poderemos corroborar a posição de Thibault-Laulan (1971), segundo a qual «a imagem é em primeiro lugar uma repetição e uma inversão»[4].
Ultrapassando uma certa desconfiança por parte dos filósofos em relação à imagem e à imaginação – por se situarem num espaço exterior ao campo de acção da razão, sendo, por conseguinte, mestras do erro e da falsidade – teremos de admitir que o estatuto da imagem se constitui como um discurso icónico paralelo, mas de poder superior, ao chamado texto linear e contínuo: «o estatuto da imagem não tem nada de sagrado, já não há reverencia pelas imagens, mas estas constituem-se como um discurso icónico (apanhadas como um conjunto de momentos visuais) paralelo ao texto linear e contínuo».[5]
É preciso ultrapassar o medo e a desconfiança de alguns educadores ou moralistas no que concerne às formas modernas da imagem, o qual não é mais do que o eco permanente de um certo medo ancestral relativamente a qualquer coisa que se apresente de um modo indefinível ou dificilmente determinável, cujo poder transcende o alcance do domínio e da capacidade intelectual humana – como havia dito Kant, somos portadores de um entendimento finito, pelo que nos é de todo impossível abarcar a totalidade da realidade na sua essencialidade mais íntima. De qualquer modo, a convivência quotidiana com a imagem, nas suas diversas formas, torna-se cada vez mais inevitável para o professor, no âmbito de todo e qualquer processo educacional.
Este é o universo vivencial e existencial dos alunos, trazido a cada momento e em qualquer situação para a sala de aula, afectando sempre, e de modos multifacetados, o processo de comunicação estabelecido entre o professor e o aluno, bem como o próprio processo de ensino-aprendizagem, pela postura intelectual e relacional em que o aluno naturalmente se situa perante o modo como os conteúdos programáticos lhe são apresentados.
A imagem não é o simples reflexo inocente e imediatamente legível do real. Pelo contrário, exige, da parte do sujeito, um esforço de percepção e de interpretação para o qual a cultura “tradicional” da escola não o tem preparado minimamente.
Há um certo desfasamento entre os domínios da aprendizagem pela escola e os domínios de aprendizagem pelos meios de comunicação audiovisual, face aos quais a escola não se deveria alhear, mas ministrar instrumentos adequados em vista de uma frutífera articulação: por um lado, porque a percepção da imagem não é independente da influência cultural exercida pelo meio em que o indivíduo se circunscreve; por outro, porque a percepção é, em si mesma, institucionalizada e a imagem funciona segundo um código icónico que lhe é próprio.
Uma mensagem visual para ser correctamente recebida e apreendida exige necessariamente uma certa aprendizagem social e cultural, além das aquisições intelectuais correspondentes ao estádio de desenvolvimento da inteligência em que o educando se encontra, aprendizagem essa que a escola, enquanto instrumento de cultura e de socialização tem, por direito, proporcionar. O «tradicional triângulo informativo e formativo que passava pela casa-escola-igreja há muito que está ultrapassado por esta civilização multimédia, influenciando o desenvolvimento cultural, social, político, psicológico e moral da criança que nos chega à escola.(...)». A escola não pode continuar alheia a esta conjuntura, devendo consciencializar-se de que vivemos, de facto, na época dos média e dos multimédia.
A escola deva adaptar a sua acção pedagógica no sentido de a integrar nessa nova civilização multimédia. Antes de mais porque é necessário que os alunos saiam da escola «com hábitos de informação e com uma capacidade crítica perante as múltiplas mensagens que continuamente os media veiculam»[6]
É necessário que a escola interiorize e veicule que “perceber”, “compreender”, “entender”, significa precisamente apreender os “universais” – quer dizer, aquilo que é apenas comum às coisas particulares, o que permanece comum para além das respectivas características individuais, sendo alcançado através de um processo de abstracção que parte do particular para o geral, representando, por isso, a totalidade do conceito [7] – as “coisas” que estão exactamente denominadas e em correspondência com as palavras, entendidas enquanto unidades do nosso pensamento.
É imprescindível, por isso, um determinado tempo de educação e de aprendizagem que a escola está em perfeitas condições de proporcionar, de modo a permitir um relacionamento mais eficaz de cada ser humano com o mundo: só apreendemos e reconstruímos mentalmente um objecto, tornando-o assim matéria nossa, quando aprendemos a dominá-lo autonomamente.
A actividade de compreensão da significação das imagens, nomeadamente a capacidade de distinção entre o sentido ou significado oculto e aparente que as mesmas encerram, se relaciona não apenas directamente com a aprendizagem dessa capacidade de dominar mentalmente o objecto representado e em seguida apropriado pelo espírito, mas quiçá e sobretudo com actividades de comparação ou de oposição que estão na base de todas as operações de codificação e de descodificação.
Devemos sublinhar, também, a dificuldade de diferenciação por parte dos jovens entre o que se vê e o que é concebido. Eis outra dimensão em que o papel da escola é deveras relevante, se nos situarmos ao nível da relação comunicacional estabelecida na sala de aula entre aluno-professor, em adequação com as estratégias de ensino-aprendizagem utilizadas pelo docente (o vídeo, o retroprojector, o projector de slides, o computador, etc.), como meios de ilustração/explicitação de determinados conteúdos programáticos, naturalmente correlacionados com toda a problemática da aprendizagem da leitura da imagem, em estreita ligação com a abordagem efectuada pela semiologia icónica, que nos permite o estudo da imagem por si própria.
A aprendizagem da leitura da imagem deve afigurar-se, aos olhos sempre atentos do educador, como verdadeiramente fundamental, antes de mais, porque «a imagem é ambígua, polissémica, a mensagem que ela transmite não pode ser decifrada com toda a certeza, contrariamente à mensagem linguística que é capaz de realizar uma comunicação não ambígua».
A ambiguidade da mensagem não é, contudo, um defeito, mas uma qualidade que é preciso aprender a compreender, a interpretar, a descodificar e a considerar nas devidas proporções. A ambiguidade da mensagem constitui mesmo a sua riqueza fundamental. Todavia, as imagens transmitem significados múltiplos e diversos, tornando-se difícil saber exactamente o que elas dizem e como o fazem.
É precisamente pela semiologia icónica que podemos investigar o problema da significação das imagens, que nos é permitido estudar os factos por ela transmitidos, enquanto eles significam, uma vez que é sempre postulada a relação entre dois termos, o significante e o significado, da qual resulta um terceiro, o signo, que é o total associativo dos dois primeiros, ou seja, o resultado da associação entre um conceito e a sua imagem mental.
A semiologia não incide senão sobre a linguagem, não conhece senão uma operação: a leitura ou a decifração, que a imagem enquanto texto exige, e para a qual a escola e o professor não podem deixar de preparar os seus alunos.


7. A semiologia icónica

A semiologia icónica, alimentando-se através dos métodos de análise extraídos da linguística, fornece-nos a possibilidade de estudar a imagem por si própria, ao concebê-la como um determinado sistema que veicula, concomitantemente, a significação e a comunicação. Permite-nos, portanto, a abordagem da imagem como um sistema, cujas leis de funcionamento podem ser cientificamente dominadas. A imagem pode ser vista como um sinal ou como um instrumento, cujo objectivo primacial se circunscreve à transmissão de mensagens.
A transmissão de mensagens requer a existência de um código segundo o qual as mesmas são pensadas e produzidas, pelo que a respectiva decifração exige, por sua vez, a posse de um código que seja comum ao receptor/espectador. Sem o conhecimento adequado do código avança-se com muita dificuldade na leitura da imagem, ou torna-se mesmo impossível decifrá-la.
No decorrer do processo de aprendizagem pela imagem, importa que o docente tenha presente que o aluno pode apresentar pelo menos duas espécies de atitudes distintas: por uma lado, a atitude de contemplação, que remete para o aspecto formal da imagem; por outro, a atitude de acção, que consiste em compreender, identificar e decifrar a mensagem, bem como à apreensão do conteúdo da imagem.
No primeiro caso, estamos perante uma “leitura estética”: apenas é captado o que se mostra pela percepção visual, o conteúdo manifesto da imagem. Permanecemos aqui no domínio da conotação linguística. No segundo, a leitura não é estética, mas semântica. Trata-se, neste caso, de um tipo de leitura que permite auscultar o que a mensagem visual significa, pelo efeito de denotação que produz, acedendo ao seu conteúdo latente.
É da inter-relação destes dois tipos de atitudes face à imagem que resulta o já referido jogo hermenêutico da interpretação/compreensão. É este que indica ao docente que, na interpretação da imagem (como na interpretação de qualquer outra forma em que o texto se apresente), deve predominar a acção sobre a contemplação, que o aspecto formal da imagem deve ser comandado pelo domínio da compreensão/descodificação da imagem, a fim de que o aluno possa alcançar o conteúdo essencial que a mesma encerra. Por outras palavras, a “leitura semântica” apresenta-se como o sustentáculo, como o fundamento, da “leitura estética”
A leitura da imagem encontra, no entanto, algumas dificuldades que importa não negligenciar, as quais se prendem, particularmente com a inexistência de uma gramática “pura” da imagem, existente à semelhança de uma gramática pura da língua: a linguagem icónica não se reduz a um único código, aplicável uniformemente a todas as mensagens audiovisuais. Ultrapassa, por conseguinte, qualquer quadro formal que lhe seja imposto.
O enunciado audiovisual oferece-se ao espectador como um tecido “intelectual-sensitivo” que possibilita, em primeiro lugar, a recepção visual global, por intermédio da qual se procura identificar as significações já conhecidas e, em segundo lugar, permite a descoberta progressiva das figuras. Como observa a propósito Judith Lazar[8] «nunca é o real que se encontra numa mensagem icónica, mas as figuras análogas do real retocadas pelos códigos específicos. O sentido de uma mensagem icónica aparece quando o espectador se torna capaz de traduzir a mensagem – conduzir o desconhecido ao conhecido – e reunir os dados visuais num saber pré-existente».
Concebemos a imagem como um meio de comunicação de massas por excelência, que pode espantar, convencer, seduzir, aborrecer ou aterrorizar… Em qualquer dos casos, a imagem é sempre acompanhada da mesma função essencial: a de entrar em contacto com o seu decifrador, tendo por objectivo principal assegurar a comunicação e a informação eficiente, numa perspectiva de qualidade, embora estes desejáveis atributos nem sempre estejam presentes na sala de aula e nos programas transmitidos pelos Mass Media.
Não obstante as questões éticas colocas a este respeito, não podemos olvidar que vivemos num mundo permanentemente invadido pela imagem, que as crianças e os jovens passam horas a fio frente ao ecrã, sem grandes preocupações selectivas; que os olhos notam primeiro a imagem do que o texto e que, independentemente de se saber ler ou escrever, a atracção da imagem é fatal. «As imagens são veículos de comunicação, escreve Lazar, trazem uma verdade. (...). O espectador da imagem recebe ao mesmo tempo a mensagem receptiva e a mensagem cultural e veremos que esta confusão de leitura corresponde à função da imagem de massas»[9].
Sabemos, ainda, que a imagem é muito poderosa e pode criar alguma passividade indesejável a todo o processo de desenvolvimento da inteligência do educando. Enquanto educadores cabe-nos, então, perguntar: a imagem na escola para quê? Por mais paradoxal que pareça, para o aluno, a imagem tem a dupla função de o encantar e, por extensão, de o fazer apreender melhor, em virtude desse primado da inteligência ou raciocínio intuito sobre a inteligência ou raciocínio reflexivo, secundarizando o “tradicional” poder de persuasão dos conceitos austeramente dados por um texto denso.
Há imagens por todo o lado. A criança de hoje vive num mundo invadido pela imagem. Desde o rótulo do gelado aos cromos ou aos posters afixados nas paredes do seu quarto, nas ruas da sua cidade, a criança está rodeada pela imagem. Regra geral, os sues olhos notam primeiro a imagem e só depois o texto. Mesmo quando não sabem ler, as crianças já são fortemente atraídas pela imagem. A imagem manipula-as, exerce sobre elas um poder de persuasão irresistível que domina instantaneamente o seu cérebro.
É actualmente um facto incontestável que as crianças ingressam na escola repletas de experiências muito diversificadas com o mundo das máquinas, com o cérebro impregnado de imagens oriundas da televisão, do vídeo e do cinema.
Esta constatação não será por si mesmo suficiente para pôr em causa o sistema escolar tal como ele tem sido estruturado, se pensarmos não só nos curricula, mas especialmente nos modos de processamento da comunicação feita pelo professor?
Os Media não podem mais ser tratados, pelo educador, como um monstro absoluto, como o rival terrivelmente detestado da sua prática lectiva e, particularmente, das suas estratégias comunicacionais, ou como o veículo de uma comunicação de teor apenas infirmativo nos domínios da socialização e da formação da personalidade do educando.
É necessário que o educador mude de mentalidade e de postura, no sentido de averiguar o outro lado do problema que nos indica, segundo algumas experiências recentemente realizadas em jovens espectadores, que é possível criar nestes, pela imagem, mesmo tratando-se da imagem televisiva, comportamentos activos, comportamentos que encerrem em si mesmo a atitude crítica, a curiosidade e a selectividade, graças a actividades de compreensão prática da imagem, da distinção entre o real e o imaginário, pela formação de um novo modus vivendi que se traduz, em última instância, na dimensão confirmativa da comunicação da imagem pelos Media.
Como pertinentemente sublinha José Cerca, «É necessário que a escola ajude os alunos, ao mesmo tempo, a distinguir o real e o imaginário entre o facto e a ficção, entre o directo e o diferido, entre a realização factual e a realização virtual de um acontecimento. É urgente que a escola desenvolva nos alunos capacidades e competências de discernimento e de descodificação crítica da linguagem dos media, de modo a tomarem consciência das múltiplas manipulações mediáticas da sociedade em que vivem».
De facto, «os média, prossegue o autor, ao exercerem uma enorme atracção sobre os seus receptores, acabam por seduzir, com grande facilidade, muitos dos seus consumidores, despersonalizando-os, muitas vezes, controlando-os frequentemente, sobretudo quando estes são incapazes de assumirem uma posição crítica perante as suas múltiplas mensagens».
Por esta ordem de razões, a grande precaução do docente deverá centra-se em manter, invariavelmente, uma preocupação pedagógica e científica adequada não apenas aos curricula, mas ao perfil e à estrutura natural do educando/grupo-turma.
Este pressuposto permite-nos mostrar, embora jamais façamos uma apologia da imagem em detrimento do texto escrito ou oral, como jamais é hoje possível que tudo se passe nos estabelecimentos de ensino como se a imagem representasse um certo perigo e atentasse contra a instituição escolar.
A repressão da imagem não pode constituir uma estratégia mais ou menos inconsciente da escola. Ao invés, deve ser requerida como um dos seus instrumentos fundamentais, como um dos meios pelos quais a aprendizagem se pode processar eficazmente, desde que devidamente tratada e utilizada, ou seja, desde que os docentes tenham sempre presente as regras hermenêuticas da semiologia icónica, pelas quais lhe será permitido evitar todos os perigos que a aprendizagem pela imagem pode eventualmente proporcionar aos jovens.
Também não poderemos permitir que se cave mais o desfasamento entre o saber dos alunos e o saber dos professores em matéria da imagem, que o professor seja o ignorante e que deva colocar as “orelhas de burro”, mas que seja o primeiro a acompanhar e a desenvolver, nos alunos, as potencialidades de aprendizagem que a imagem oferece. Por isso, o nosso campo de investigação, o do professor, deve situar-se na encruzilhada da sociologia da comunicação, da psicopedagogia e da semiótica.
É evidente que a escola está em crise, que a televisão, a imagem, o audiovisual, são o “bode expiatório”, mas não seguramente a causa única dessa crise. Urge, por conseguinte, rever as noções de aprendizagem, de ensino, de educação, de instrução, de cultura, de aluno, de professor, de escola e de sociedade, se pretendemos, de facto, senão superar, pelo menos minimizar os aspectos mais negativos desta conjuntura educativa.
Teremos de desenvolver todos os esforços para que possamos deixar de corroborar a tese de Jaquinot, segundo a qual «a pedagogia apostou tradicionalmente nos valores da informação mais do que nos valores da evasão, na observação à custa da imaginação e no documentário em detrimento da ficção. A imagem, quer seja mental ou técnica, é igualmente desvalorizada pela escola. Desconfia-se dela, se é aceite, é para perverter – outros diriam é para a dominar – posta ao serviço do verbo, tomada por ele, controlada por ele, numa palavra, negada»[10].

Isabel Rosete
Agosto, 2006/
Novembro, 2007

Notas
[1] Cf. Leandro Almeida (1994), Inteligência. Definição e Medida, p. 50-51 e p. 53
[2] Cf. Logos , Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia (1990), Vol. 2, pp. 1458‑1459.
[3] Cf. Gerard Legrand (!986), Dicionário de Filosofia, p. 328.
[4] Thibault-Laulan (1971), L’image dans la Société Contemporaine, p. 18.
[5][5] Moles (1981), L’image Communications Fonctionnelle, p. 132.
[6] José Cerca, (1996), “Uma Civilização Multimédia”, Revista Noesis nº37, p. 12.
[7] Para sermos mais precisos na determinação deste conceito cuja “definição” foi sempre tão polémica ao longo da história do pensamento filosófico ocidental, deveremos distinguir entre “universais” e “universal”. Segundo a escolástica, reagrupavam-se com o nome de “Universais” os termos (universais, não particulares) da lógica clássica: os géneros e as espécies definidas por Aristóteles. A chamada polémica dos Universais pôs em confronto duas grandes correntes do pensamento: o nominalismo e o realismo. Segundo os primeiros os universais apresentam-se como simples nomes sem qualquer existência verdadeira; para os segundos os universais possuíam, ao invés, uma existência real que precedia e estruturava os objectos aos quais se aplicavam. Por outro lado, o termo “universal” diz-se, na lógica clássica, “de um atributo que pertence a todos os indivíduos de uma classe tomados individualmente. A proposição universal é a que aplica este atributo a cada um dos indivíduos contidos na extensão do sujeito”.(Cf. Gerard Legrand (1986), Dicionário de Filosofia, p. 378).
[8] Ibid., p. 138.
[9] Ibid., p. 140.
[10] G. Jacquinot (1981), Communications, Apprendre des Média, p.209