quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Crítica da CRÍTICA: "alta cultura" e "baixa cultura"

A crítica nunca esteve tão desacreditada como nos dias de hoje. Entre leigos, a crítica é aquela de cinema, que sempre enche de “estrelinhas” os filmes difíceis de entender, ao mesmo tempo em que desqualifica a escolha da audiência. Para os artistas, é aquela senhora mal-humorada, que não compartilha do desbunde em relação à “obra”, chegando às vezes ao requinte de esculhambar seu realizador. E, para os críticos, a crítica é pura nostalgia, de um tempo em que eles ditavam o gosto, destruindo ou construindo reputações.

Lamentavelmente, hoje, a crítica é, em geral, vista como “elitista” (no sentido que as esquerdas conferiram ao termo). Numa época de “democracia” reinante (mesmo que fictícia), não se admite que uma “minoria” intelectual decida por uma “maioria” consumista. Para a indústria, aliás, não interessa que haja um padrão de qualidade mínimo, pois isso implicaria numa “exclusão” automática de quem (ou o quê) não atingisse os (pré-)requisitos.

Ao encontro de uma necessidade mercadológica (vender o que quer que seja – mesmo que ruim) e de um imperativo ideológico (igualdade, liberdade, fraternidade), toda uma nomenklatura veio neutralizar qualquer pensamento crítico a partir do século XX. A começar pela idéia de nobrow.

Quem é mais ou menos versado sabe que highbrow corresponde, aproximadamente, à “alta cultura” (erudita, clássica, considerada inatingível) e lowbrow corresponde à “baixa cultura” (popularesca, primitivista, sem sofisticação). Como ninguém vive só de Bach, Mozart e Beethoven, e como é preciso sobreviver na “cultura pop” (para não se isolar do resto do mundo), inventaram o middlebrow. Era, nos 1900s, uma maneira de conciliar Shakespeare com Lennon&McCartney, Picasso com o universo das HQs, Villa-Lobos com Agatha Christie. Até aí, uma coisa razoável. Digo, até surgir o nobrow.

O nobrow é a ausência de brow, ou seja, é o fim das classificações entre alta, baixa e média culturas. É o “vale tudo”. É o “qualquer maneira de amor vale a pena”. É o “cada um na sua”. É o tal (do) “gosto [que] não se discute” – que, para a crítica, foi um tremendo de um golpe.

Gosto se discute, sim, por vários motivos. Se não há crítica, não se avança. Ficamos sempre na estaca zero. Afinal, o crítico é aquele que, supostamente, conhece o assunto que aborda e vai dizer se determinada manifestação artística é válida ou se deve ser descartada. A partir do momento em que o crítico não consegue trabalhar (ou por que não lhe oferecem trabalho ou por que a crítica caiu em desuso), vive-se o caos. Como estamos vivendo agora: universitários assistindo a reality shows e gostando; governantes semi-analfabetos que não sabem quem são os colunistas da principal revista semanal (porque não lêem nem essa); as telenovelas como única forma de ficção a ser consumida, enquanto o mercado editorial míngua tiragens de alguns milhares (num País de muitos milhões); a imposição de um língua ortografica e gramaticalmente errada, uma vez que a “certa” seria considerada impopular e opressiva (já que a ignorância é dominante). Entre outras coisas.

Crítica é, também, falar mal – algo que o “politicamente correto” coíbe do início ao fim. Com eufemismos, e só com eufemismos, não há como fazer crítica. E, na era dos superadvogados e dos megaprocessos jurídicos, abrir a boca pode ser um perigo. No Brasil, ainda persiste o péssimo hábito da unanimidade. Assim, criticar uma figura unânime não é apenas uma maneira de ir rumo ao tribunal, é igualmente uma forma de declarar guerra a um “fã clube” (cujo radicalismo beira o dos fundamentalistas islâmicos).

A crítica, na verdade, está tão contida que só “passa” em forma de piada. Não admira que os mais populares colunistas da imprensa, hoje em dia, sejam os humoristas que – de uma maneira ou de outra – fazem... crítica. Crítica séria nem pensar. Vira ofensa. E os “ofendidos” são cada vez em maior número, embora sejam ainda considerados, eufemisticamente, “minorias”. Se você, por exemplo, tem uma opinião formada sobre um determinado grupo, e aplica sua opinião a um membro desse grupo, é logo chamado de “preconceituoso”.

Há muito tempo, eu digo que não tenho “preconceitos” mas “conceitos”. Se eu tenho uma opinião sobre determinado tipo de pessoa, e aplico essa mesma opinião a uma pessoa que – a meu ver – cabe nesse “tipo” específico, sou logo tachado de “preconceituoso”. Por quê? Ela tem penas, bota ovos e cria pintinhos que depois viram frangos... Digo de uma vez: “É uma galinha!”. Ao que alguém me responde: “Imagine que é uma galinha. Como você está sendo preconceituoso!”. (Claro, pode ser um elefante... Ou uma mosca...)

Felizmente, com a internet, parece que a crítica está voltando. Infelizmente, porém, prolifera nela o crítico amador, que é quase o anticrítico. Na maioria das vezes (há exceções), a critiquinha que vemos surgir na Web é aquela de alguém que começou ontem, tem centenas de opiniões (infundadas) sobre diversos assuntos e acredita estar fazendo jornalismo da melhor qualidade. É um erro. E você não pode falar nada, porque está sendo contra, por exemplo, a “liberdade de expressão”. (Contra os blogs...) Sinceramente, não acho que qualquer pessoa pode ser um crítico; como qualquer pessoa não pode ser um médico, um astronauta, um cientista – apenas porque quer; apenas porque, certo dia, acordou com vontade de “criticar” alguém ou alguma coisa.

Sou a favor da crítica e sou contra a “crítica” bem-comportada de hoje. Mas não apóio a crítica irresponsável. Exibida. Intolerável. Doutrinária – fingindo, digamos, “criticar” as ideologias em geral, mas, no fundo, impondo (nas entrelinhas) sua própria ideologia. Crítica pode ser manipulação também, e o desejo de transmitir “juízo crítico” a quem lê pode se converter em uma maneira de, aí sim, transmitir “preconceitos”, idéias e pensamentos preconcebidos. Portanto, os critiquinhos deveriam desistir do ofício.

A crítica, contudo, deve, de alguma forma, voltar. O público clama por orientação – e isso é nítido. Desde a popularidade dos manuais de auto-ajuda até o fanatismo religioso ressuscitado, todo mundo se sente destituído de certezas e não agüenta mais essa realidade relativística onde “tudo é válido”. A crítica não é determinismo e não vai obrigar ninguém a seguir por essa ou por aquela via – vai, simplesmente, iluminar o caminho. Aprendi o que sei com críticos; e não apenas jornalistas – mas gente que assumiu a tarefa de separar o joio do trigo. Você, aliás, pode até discordar de mim, mas garanto que, em algum momento, precisou igualmente de orientação. E de crítica.

Fonte: "Digestivo Cultural" (05/01/2010)

Isabel Rosete - pesaquisa e divulgação

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