quinta-feira, 13 de março de 2008



A Tarefa da Filosofia, por Waldomiro José da Silva Filho
Universidade Federal da Bahia – UFBA

Qual é a tarefa da filosofia? Esta, no entanto, não é uma pergunta que se possa fazer antes de lidarmos com temas, problemas e argumentos filosóficos; não é possível explicar os procedimentos, métodos e técnicas filosóficas sem que um problema filosófico esteja em questão. Pois a filosofia (assim como a ciência) não é um corpo de saberes ordenados que podem ser trasmitidos: é, outrossim, uma prática... o exame das crenças enquanto crenças, dos significados enquanto significados.
Para nós, na vida comum, prática política e religiosa, inúmeros discursos funcionam como se apontassem para as coisas como elas são realmente. Wittgensteins certa vez escreveu: "Temos agora uma teoria (...) mas não se nos apresenta como uma teoria. O que caracteriza esta teoria é o fato de olhar para um caso especial e claramente intuitivo e dizer: 'isto mostra como as coisas são em cada caso; este caso é exemplar para todos os outros casos' --- 'Claro! Tem de ser assim', dizemos nós, e ficamos satisfeitos. Chegamos a uma forma e expressão que se nos afigura como óbvia. Mas é como se tivéssemos agora visto sob a superfície" (Zettel, par. 444). Há momentos em que todos nós devemos assumir que nossas crenças (gnoseológicas e morais) não são crenças, mas fatos que não necessitam de exame (exatamente porque não poderiam ser de outro modo senão assim), são evidentes, certos... reais. Há crenças, imagina-se, que não são produtos da imaginação e, por isso, não podem mudar ou falhar: as coisas são assim, não poderiam ser de outro modo; é evidente!
Este entusiasmo é ainda mais frenético quando estamos falando não sobre mesas e coisas banais, mas sobre o próprio modo de conhecermos, o modo da construção ou aquisição de crenças verdadeiras, o sentido primeiro das coisas, o fundamento geral da moral; ou seja, quando pensamos que estamos filosofando.
A filosofia, como a penso, principalmente no horizonte da guinada lingüística tem a tarefa de colocar as crenças, as teorias e os significados no único lugar que lhes cabe... exibindo-os, não mais, não menos, como simples crenças, teorias e significados. Ela combate nosso entusiasmo epistemológico e moral e não substitui uma crença má (falsa) por uma crença boa (verdadeira). Como dizia Peirce, não é honesto, por parte de um filósofo, tentar desfazer deliberadamente as crenças de ninguém. A construção e a mudança de crenças é uma tarefa de mulheres e homens (que nao são filósofas e filófosos).
A única contribuição a filosofia para a civilização é negativa: não há crenças verdadeiras nem crenças que podem vir a ser verdadeiras porque estamos mais próximos (com estas crenças) da realidade; existem crenças porque dominamos o sentido da verdade (sabemos o que necessário para uma crença ser verdadeira); as crenças são a medida do que tomamos por realidade.
Sim, realmente, há um mundo objetivo, real e concreto, mas jamais saberíamos disso se não estivéssemos conversando a propósito do mundo com outros que suponho serem como eu, mesmo que sejam de outra etnia. Mas para conversar sobre o mundo devemos dominar o sentido de falar com verdade sobre o mundo. A verdade (seja lá o que podemos endenter por ela) é a condição da conversa.
Há algo que não temos percebido na teoria traskiana da verdade: ela é uma teoria ponto a ponto, para cada frase de uma língua finita... Por isso não podemos definir o que é a verdade tout court. Só sabemos o que é, realmente, verdadeiro na conversa concreta com outros como nós, pois para ser compreendido pelo outro e para compreender o que o outro diz devo dominar as condições objetivas em que o que se diz é dito com verdade.
Há a não-verdade? Claro, mas para estar errado ou cair em falsidade, a mulher e o homem devem já estar de acordo com toda a humanidade em muitos aspectos.
Talvez, corrijo-me agora, a filosofia contribua ainda com outro coisa: a defesa irrestrita da democracia e da liberdade objetiva das mulheres e dos homens (seja lá o que isso signifique); o horror absoluto contra qualquer censura ou tortura. Por isso, penso, a teoria da ação é para onde desagua a filosofia contemporânea... enfrentar o dilema kantiano entre o determismo físico e a liberdade da vontade. O mundo "causa" nossas crenças, mas não as justifica, porque no mundo não há verdade (nem falsidade). Só nossas crenças (verdadeiras) podem justificar nosso agir e, no mais das vezes, já dizia Aristóteles, não podemos agir contra nossas crenças. Agimos contra as melhores razões e contra nossas melhroes crenças apenas numa situação, quando queremos mudar e inventar nossos mundos, donde a beleza indelével da poesia, da política e da religião.
Spinoza escreveu na Ética que "a verdade é norma de si mesma e da falsidade [veritas norma sui et falsi est]". É esta a verdade que interessa à filosofia; não a verdade de fato, mas a verdade patente... "la norme du vrai".
Salvador, 4 de outubro de 2001

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