quarta-feira, 12 de março de 2008

Alguns Dilemas da Estética Contemporânea: Arte e Simbolização em Nelson Goodman, por Isabel Rosete

Não obstante os progressos tecidos pela subjectividade moderna e institucionalizados pelo «Mundo-da-Arte» defrontamo-nos, hoje, com alguns sistemas estéticos, com algumas filosofias da arte, cuja abrangência ainda não atingiu o ponto que lhes permita colocar a questão proposta por Nelson Goodman, em Modos de Fazer Mundos, pela qual o autor inquire, com pertinência, «Quando é arte?» que substitui essa outra, puramente ontológica ou essencialista, que pergunta, debalde, «O que é a arte?», em nome da qual moldámos, durante séculos, o nosso modo ocidental de ver a arte e as obras de arte.
Embora estas duas questões sejam, de facto, dois modos distintos de formular o problema prioritário da Estética, a segunda tem‑nos impedido de aceder à compreensão adequada dos fenómenos artísticos mais recentes, revolucionadores do pensar, do modo de ser da arte e da arte se dar, pela sua novidade, pela sua diferença, pela sua especificidade e irredutibilidade que, por vez, nos choca e nos coloca para além da vulgaridade que transcende o nosso relacionamento familiar com as coisas, que nos interpelam mesmo que desviemos o olhar, fechemos os nossos ouvidos ou tornemos o tacto insensível.
São fenómenos polémicos que agitam e põem em causa os nossos hábitos e convenções, filtrados pela lente da cultura, imperativamente condicionadora e determinadora das características ou propriedades pelas quais formamos a nossa imagem do mundo pela arte.
Mudanças radicais foram impostas pela era industrial ao mundo da arte e, grande parte delas, de natureza artisticamente provocatória. Obras da vários autores contemporâneos, desde Duchamp, constituíram um «quebra-cabeças» para artistas e historiadores e continua a ser um enigma a par o grande público, tal como «Porquê não espirrar Rose Sélavy?», ready-made, composto pelo controverso artista em 1921 para Katherine Dreier, que encomendou a Duchamp um objecto artístico para oferecer à sua irmã, Dorothea Dreier, devolvido de imediato, por não cumprir, do seu ponto de vista instituído, nem uma função estética, nem uma função artística.
E que objecto é esse a que o autor atribuiu um título tão invulgar para uma pretensa obra de arte: «Porquê não espirrar Rose Sélavy?»? Tão só um amontoado de cubos de mármore que parecem pedaços de açúcar, um termómetro e um osso de choco dentro de uma velha gaiola rectangular para pássaros.
A obra não foi um sucesso. Não foram muitas as pessoas que a contemplaram, mas aquelas que a viram, consideram que era de difícil compreensão, como tantos outros objectos do género, mas ao mesmo tempo demasiado estranha para não reter em si mesma algum significado. Era a espécie de um objecto de transição que insuflou o espírito dadaísta nos pulmões do surrealismo que começava, na altura, a evoluir.
Embora tenha sido integrada, em 1936, numa exposição surrealista, não deixou de ser, apesar disso, colocada numa vitrina ao lado em com o mesmo estatuto de fétiches da Papuásia e de modelos de demonstração matemática do Instituto Científico de Poincaré.
A semelhança com estes modelos pretenderia incitar o espectador a retirar o objecto de um contexto de peça de arte? Conferir-lhe um outro estatuto que não o de obra de arte ou de objecto estético? Saberemos onde colocar, com legitimidade, esta espécie de objectos que os artistas contemporâneos e hodiernos nos apresentam como obras de arte, mas que para o espectador e até mesmo para os críticos e historiadores de arte se apresentam com um estatuto assaz ambíguo?
E aqui o dilema é apenas este: se até ao final do século passado sabíamos identificar com facilidade um objecto como obra de arte, porque as distinções entre as obras de arte e os outros objectos eram explicitamente estabelecidas pelas qualidades das próprias obras no que respeita aos meios empregues, à estrutura formal e ao assunto. De um modo geral, sabíamos que a pintura e a escultura eram sempre representações de objectos ou acontecimentos efectivamente presentes na vida dos povos.
Por conseguinte, o que designamos hodiernamente por arte abstracta ou arte conceptual, os ready-made ou os happennings, não têm lugar nesta concepção de artisticidade de regras bem definidas e absolutamente inflexíveis, que excluem o diferente, o aparentemente estranho ou excêntrico, porque completamente novo e desenquadrado das bitolas desse nosso modo ocidental de perspectivar a arte, sem resposta para as novas formas de criação do espírito humano que exigem outras formas de avaliação à luz de outras categorias estéticas que não o belo, o sublime ou o harmonioso.
E esta mudança de posturas, esta alteração dos hábitos do ver, do sentir e do ouvir as obras arte, causam (e causa, naturalmente) grande embaraços a todas essas doutrinas estéticas que indagaram desesperadamente no caminho de uma definição mais ou menos consensual de arte e de obra de arte, porque não estavam despertos, como Goodman para a flexibilidade frequente dos objectos que ora podem ou não funcionar como obras de arte, em virtude da dimensão simbólica que os enferma que é tão ou mais efémera que vida dos seus próprios criadores, porque não souberam acompanhar teoricamente essa ideia central da estética contemporânea, não preocupada com definições essencialistas ou ontológicas, na procura de propriedades comuns, mas em saber quando determinado objecto, num dado momento, ocupa o estatuto de obra de arte e facilmente o perde, em função das circunstâncias que alteram o contexto que o fazia pertencer a esse conjunto de objectos que designamos, convencionalmente, como obras de arte.
Mesmo os próprios artistas que vestiram a roupagem desta nova vaga, os impulsionadores mais provatórios dos novos movimentos estéticos, que Goodman acompanhou de perto, tentando construir a sua teoria estética à luz de uma elucidação bem clara desta problemática, de que o texto «Quando há Arte» é o testemunho mais evidente, lógica e filosoficamente fundado numa argumentação de fina sensibilidade estética das quais resultam teses explicitamente justificativas dessas novas forma de criação artística como obras de arte, bem como um conjunto de pistas que nos permite compreender o estatuto mutável dos objectos estético exprimem algumas dificuldades em explicar, desse modo objectivo que o público espera, as suas próprias criações.
Marcel Duchamp, manifesta o seu embaraço, quando lhe pedem para esclarecer, ou pelo menos para alvitra uma interpretação plausível desse objecto estranho que apelidou, bizarramente de «Porquê não espirrar Rose Sélavy?». As suas palavras são simples e puramente descritivas, pouco acrescentando ao que podemos observar directamente:
«Esta pequena gaiola está cheia de cubos de açúcar... mas os cubos de açúcar são feitos de mármore, quando se lhe pega, fica-se surpreendido perlo peso inesperado. O termómetro destina-se a registar a temperatura do mármore.»[1]
Esta obra assim descrita pelo seu autor, é apenas um dos casos paradigmáticos, entre outros que poderíamos apresentar, com idênticas dificuldades hermenêuticas, mas que nos permite compreender e justificar de uma forma ainda mais evidente a problemática central em envolve o nosso filósofo se envolve em «Quando é Arte?». Pela importância que encerra enquanto exemplo das controversas estéticas contemporâneas, importa que lhe dediquemos um pouco mais da nossa atenção, nessa perspectiva, que nos guia desde o princípio deste ensaio que se pauta pela defesa da posição estética de Goodman.
Neste sentido, o que nos resta acrescentar ás declarações de Duchamp, de molde a fundamentar exemplificativamente o paradigma filosófico-estético goodmaniano em análise?
«Porquê não espirrar Rose Sélavy?», com as suas sugestões de peso – o mármore – promessa de doçura – os falsos cubos de açúcar – falta de calor – termómetro – eventualmente poesia – o canto do pássaro, exemplificado pelo osso de choco – voo aprisionado – o osso de choco dentro da gaiola – e arte – a cubismo e a utilização do mármore – parece conter uma mensagem para a promotoras da encomenda (as irmãs Dreier). O título irreverente é, seguramente, uma proposta.
Este e outros exemplos que podemos recolher da história da arte, exemplificam a complexidade destes problemas, ao mesmo tempo que tornam possível a compreensão do triângulo estético que os delimitam, e dos quais são absolutamente inseparáveis. Aliás, a teoria funcional de Goodman, ou teoria do funcionamento simbólico das obras de arte, parte precisamente de uma reflexão sobre o estatuto dos «ready‑made», dos happennings, dos objects trouvés e da arte conceptual, formas da arte contemporânea se apresentar, amiúde, geradoras de polémica e de tensões assaz conflituosas que colocaram em questão o estatuto da obra de arte e a noção de artisticidade.
É claro que este problema só se coloca, com acuidade, a partir do século XX, em função desses casos “bizarros” que os artistas põem à nossa disposição, propondo que os aceitemos como obras de arte, mas que, no entanto, em nada se assemelham ao conjunto daqueles que institucionalmente foram considerados enquanto tal, por não apresentarem características comuns que nos permitem dizer, segundo o uso classificativo ou descritivo, que tal ou tal objecto pertence ao consagrado mundo das obras de arte.
Torna-se necessário ultrapassar as questões de ambiguidade colocadas pelos chamados “objectos ansiosos”, essa espécie de criação da arte contemporânea que nos conduz a formular juízos incertos, assaz ambíguos sobre um dado objecto no que concerne ao facto de ser ou de não ser uma obra de arte e reflectir sobre a natureza da arte, tendo em consideração a especificidade do choque provocado, de molde a evitar que se caia numa das duas posições extremistas: se, por um lado, não estamos dispostos a aceitar que tudo é arte, situando-nos numa posição que prime pela ausência de critérios, também não estamos dispostos, por outro, a reduzirmos o nosso posicionamento às teorias que perguntam, sem mais, «O que é a arte?» e, por conseguinte, procurar o conjunto de características ou propriedades dadas como absolutas e definitivas, as quais todos os objectos têm de possuir para serem designados como obras de arte.
Nada pode ser determinado ad eternum, dado como absoluto ou definitivo, seja qual for o domínio cognitivo a que nos referíramos; nada é dado como imutável, mas sempre sujeito às mais inesperadas metamorfoses. A história da arte está repleta desses choques (e o mesmo diremos relativamente à história do conhecimento humano em geral), em virtude do proliferamento das formas sempre novas da arte se mostrar.
Os «objectos ansiosos» – que apareceram pela primeira vez com Duchamp, em 1917, aquando da apresentação provocatória da «Fonte» à Society of Independent Artists – contam-se entre as aventuras da arte, entre as experiências limite do mundo da arte, até meados do século XX. E senão foram importantes para a arte foram-no, seguramente, para a estética.
Goodman capta, apresenta e legitima o essencial desta problemática. E renovando, em 1968, a questão prioritária da caracterização da arte, ao infirmar, por um lado, a necessidade de uma definição de arte e, ao afirmar, por outro, que a natureza da arte deve ser procurada na simbolização.
Precisamente na obra de 68, Languages of Art, a função simbólica da arte é dada por adquirida e o objectivo consiste em analisar detalhadamente e de um modo absolutamente rigoroso os diferentes sistemas de símbolos e processos de simbolização pelos quais essa função se manifesta. Mas é apenas em 1977, com o texto «When is Art?» que a caracterização da arte pela simbolização se torna um problema central, porque:
a) Goodman não acredita nem aceita que exista uma forma única de experiência estética que permita substituir um essencialismo artístico por um essencialismo estético;
b) Por isso, procede à seguinte deslocação: são os processos simbólicos que se encontram implicados na experiência estética que caracterizam a arte.
Como qualquer um dos filósofos da indefinibilidade da arte, Goodman compartilha a crítica das teorias essencialistas e, em particular, a ideia de que a questão «O que é a Arte?» não deve ser a questão inicial, a questão prioritária que a estética ou a filosofia da arte deva colocar. Porém, não aceita que a dificuldade em caracterizar a arte decorra do facto de esta ser um «conceito aberto», nem acredita que uma teoria estética sistemática constitua uma impossibilidade lógica.
A teoria de Goodman tem em comum com as teorias institucionais a tese central: a caracterização da arte não deve ser procurada nas propriedades intrínsecas dos objectos que são obras de arte, mas nas suas propriedades relacionais. No entanto, e contrariamente a estas teorias, jamais admite que essa caracterização tenha de ser dependente, de qualquer forma que seja, da apreciação crítica.
Este posicionamento indica-nos que a questão inicial deve ser: «Quando é Arte?». A resposta a esta questão absolutamente prioritária, quando se trata da identificação do que é obra de arte, é perfeitamente clara, simples e rigorosa, pondo fim à questão da ambiguidade despoletada por todas essas situações de choque que perpassam o mundo da arte, mas que hoje – e particularmente depois de Goodman –, já não nos chocam de sobremaneira, porque: «é devido ao facto de funcionar como símbolo de uma certa maneira que um objecto se torna, quando assim funciona, uma obra de arte»[2]. Os termos a destacar são: «funcionar» e «símbolo»; e a expressão central desta resposta é: «funcionar como um símbolo de uma certa maneira».
Goodman funda a natureza da arte na simbolização. Mas para que tal fundação seja possível é necessário demonstrar que:
a) Todas as obras de arte desempenham uma qualquer função simbólica;
b) Existem características específicas a esse funcionamento em relação a outros modos de funcionamento simbólico, tais como o da ciência, da filosofia ou o das práticas da vida quotidiana.
A condição a) parece-nos ser logicamente prioritária, logo, a primeira tarefa da filosofia da arte, consiste em demonstrar que todas as obras de arte desempenham necessariamente uma função simbólica, ou por outros termos, que o funcionamento simbólico é condição necessária para que haja arte ou para que um dado objecto seja considerado como obra de arte.
Embora não focalizemos mais pormenores sobre a estrutura argumentativa que envolve este posicionamento, importa, no entanto, referenciar que a caracterização da arte em termos de simbolização, tal como Goodman a apresenta, traz vantagens indiscutíveis ao nível das incursões estético-hermenêuticas requeridas por todos esses casos mais controversos do mundo da arte contemporânea, na medida em que nos possibilita aceder a uma explicação não só plausível, mas absolutamente legitima, através do qual nos afastamos da ambiguidade para que os mesmos nos remetem frequentemente, porque:
a) Simbolizar e algo que pode acontecer a qualquer objecto ou acontecimento, uma vez que ser símbolo não depende das propriedades intrínsecas dos objectos e, por isso, qualquer objecto ou acontecimento pode ser uma obra de arte desde, que funcione simbolicamente;
b) Além disso, como a simbolização não enferma de um estatuto fixo, podendo ser adquirida ou perdida por qualquer objecto em função do contexto ou circunstâncias que lhe estão adstritas, não temos de colocar a questão da simbolização ao mesmo nível daquela que inquire pela essência das obras de arte. Não se estranha, portanto, que os objectos possam ser e não obras de arte em contextos ou situações diferenciadas;
c) Consequentemente, dois objectos perfeitamente idênticos podem funcionar, um e não outro, como símbolos estéticos[3].

Isabel Rosete
Novembro, 2007

Notas:
[1]
[2] Goodman, citado por Carmo D’Orey, in “O Que É Arte?” Ou “Quando Há Arte?”, p. 83.
[3] Cf. Carmo D’Orey, op. cit., pp. 84 - 85.

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