FILOSOFIA CLÍNICA: Sebastião Soares
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Presidente da Associação Mineira de Filosofia Clínica
Em dezembro apresentamos uma conversa com Sebastião Soares, filósofo clínico mineiro, professor titular de Filosofia Clínica em Belo Horizonte. Soares tornou-se uma referência no estado mineiro, sendo muito respeitado e admirado entre os colegas.
Pergunta – Centenas de colegas pelo Brasil estão fazendo os estágios supervisionados para a obtenção do Certificado A, habilitação clínica. Quais as indicações que o senhor poderia passar a esses colegas de modo a tranqüilizar e encorajar os mesmos nessa tarefa trabalhosa?
Sebastião Soares - Os estágios supervisionados são decisivos na escolha do filósofo clínico. È o momento em que podemos conhecer, de maneira concreta e objetiva, a prática clínica, entender os procedimentos que nos levam na direção do outro e, principalmente, exercitar os nossos ouvidos para escutar. Não apenas ouvir, mas escutar de uma maneira nova, sem transformar o eco da nossa voz, no que pensamos ser a voz do outro. O estágio supervisionado nos ensina a ouvir o que o outro diz; o que ele expressa, seja verbalmente ou através de outros dados de semiose. Aprendemos a ler o silêncio e a ouvir a sinfonia dos sons do silêncio. O estágio supervisionado é um momento extremamente necessário para o exercício do escutar, uma vez que saber ouvir é um princípio determinante na prática clínica. O filósofo que não sabe ouvir, que não escuta o outro, não saberá o que fazer em muitos momentos da terapia. Não há clínica, nesta situação.
Os estágios supervisionados nos exercitam, também, para o conhecimento das possibilidades clínicas, através das pacientes e rigorosas transcrições das gravações. Para muitos alunos este enorme desafio, alguns propõem a supressão das transcrições, deve ser suprimido. Tenho ouvido reclamações com relação às transcrições e recebido sugestões para que essa prática seja suprimida dos estágios; não concordo. Esta é uma exigência didática necessária e imprescindível para a avaliação dos estágios e para a prática dos filósofos clínicos em formação. Gravações, transcrições e anotações são componentes orgânicos do processo terapêutico. Pode ser que, após alguns anos de clínica, quando a audição estiver suficientemente adequada às necessidades do ouvir, quando estiver treinada e qualificada para associar escuta, percepção e leituras de semioses, esses procedimentos possam ser deixados de lado, ainda assim tenho dúvidas. No estágio supervisionado são absolutamente fundamentais. Pela transcrição o filósofo clínico em formação percebe as nuances, as saliências e percursos literais da fala da pessoa; identifica saltos lógicos, lapsos temporais, termos padrões; analisa e divide, divide e enraíza; observa e examina a sua própria conduta durante a terapia. A transcrição rigorosamente literal é a matéria prima básica para os procedimentos terapêuticos; ela é determinante para analisar a qualidade da colheita categorial, ela define se o que foi colhido é suficiente e adequado à montagem da EP. Enfim, é o caminho para a terapia. Não há outro. Pode ser árduo e trabalhoso. Será? Dependente da medida de cada filósofo clínico em formação.
Para os meus alunos tenho recomendado a não deixar acumular transcrições. Uma vez feita a transcrição do pré-estágio, com a montagem da própria EP concluída, segue-se o estágio supervisionado. Observo que não é recomendável deixar transcrição do pré-estágio juntar-se a transcrições do estágio supervisionado. Recomendo, também, fazer a transcrição logo após a consulta ou entre um consulta e outra - essa prática serve, também, para melhorar a qualidade do planejamento clínico. Insisto para se evitar o acúmulo de fitas, especialmente fitas de partilhantes diferentes. Nesta situação, com muitas fitas acumuladas, as transcrições podem ficar ainda mais trabalhosas. A transcrição é apenas uma questão de método, um instrumento essencial para a nossa formação em Filosofia Clínica.
Pergunta – O que o senhor tem aprendido em sua atividade clínica desenvolvida no consultório?
Sebastião Soares - Lição principal: a Filosofia Clínica é prática, prática e mais prática; essencialmente práxis; determinantemente atividade concreta no processo terapêutico. Só e somente só, através da prática e pela práxis é que percebemos e compreendemos o manancial inesgotável da Filosofia Clínica; por meio da prática, permanente e cotidiana, nos habilitamos a dispor de estoques variados de procedimentos clínicos; é pela prática que refinamos a nossa intuição; é pela prática, só e somente só, que posso me afirmar como filósofo clínico.
A teoria é uma necessidade da prática, são conteúdos de um mesmo processo que se realizam e se efetivam na atividade prática. A teoria, nesta acepção, não se restringe ao estudo dos textos filosóficos, mas a busca do conhecimento multidisciplinar, a pesquisa exaustiva e constante da erudição aplicada a um fim: a qualificação do filósofo clínico. Por isto, não se trata do conhecimento diletante de muitos corredores das academias, não apenas o saber pelo saber, mas, a atualização iluminista do conhecimento espreitado por uma teleologia, ou mesmo retomando Aristóteles, o saber como fazer que tem como objeto o bem que é visado pela ação. Assim, no consultório, é decisivo saber fazer, como é importante saber porque faço.
A prática clínica nos coloca em contato com o outro, nos aproxima da verdade do outro, nos encaminha para alteridade, com todas as responsabilidades que esse movimento implica. O consultório me traz o outro, não mais como teoria dos Cadernos e dos demais textos de apoio, mas um outro de carne e espírito, de sonhos, desejos, apetites, medos, angústias e inquietações; a presença desse outro, que em muitos momentos ressoa o eco do outro que sou eu, me vem, a princípio e a priori, como uma vastidão cósmica incognoscível, do qual nada posso dizer, ainda. O que me espera frente a esse outro? O que esse outro significa quando me olha, quando me espreita, sisudo ou sorridente? Uma crítica, uma ironia, uma dúvida? Afinal, quem é esse outro? Não há teorias que possam responder, prontamente. Só mesmo a prática clínica, atenta, recheada de carinho e respeito, será capaz de me abrir o caminho em direção ao ser do outro. Aprende-se que o atendimento clínico, nem sempre, é tranqüilo como água de poço.
Com a atividade clínica no consultório ou nos ambientes nos quais ocorre interseção, aprendi que a Filosofia Clínica, construção genial de Lúcio Packter, por suas evidências terapêuticas, funciona. Sendo ainda uma ave que levanta vôo no amanhecer, a Filosofia Clínica revela-se, no consultório, como uma possibilidade aberta que responde, de forma positiva, aos seus propósitos e objetivos. É uma prática terapêutica com resultados mensuráveis no sentido de levar bem-estar e alívios existenciais às pessoas que a procuram; confirma-se, também, como possibilidade para que muitas pessoas componham ou recomponham os seus itinerários existenciais.
O consultório reafirmou, sobretudo, que o filósofo clínico, para ser digno da sua missão, deve ser absolutamente ético e honesto, na compreensão de que a sua atividade é exercício concreto de um humanismo demarcado pelo respeito e carinho à pessoa com a qual mantém-se em interseção.
Pergunta – Quais os projetos para Minas Gerais?
Sebastião Soares - Em Minas Gerais, em razão do trabalho pioneiro do professor Hélio Strassburger, a Filosofia Clínica se instalou em várias regiões. Em Belo Horizonte, Divinópolis, São João Del Rei e Uberlândia há novas turmas em andamento, com alunos de várias cidades. Há, no Estado, vários filósofos clínicos com Certificado A e muitos em fase final do estágio supervisionado. Neste sentido pode-se afirmar que a Filosofia Clínica é uma realidade inserida na EP das Minas Gerais. Precisamos, com isso, aumentar o intercâmbio entre os filósofos e os estudantes de Filosofia Clínica. Este será um dos objetivos da Associação Mineira de Filosofia Clínica- AMFIC para a qual fui eleito presidente, no dia 01 de dezembro.
Inicialmente, a nova diretoria da AMFIC pretende organizar as atividades da Associação no Estado, criando coordenadorias regionais e incentivando a criação de centros nas cidades onde há turmas em formação.
Vamos realizar trabalho de divulgação da Filosofia Clínica através de boletins mensais e um jornal semestral, além de participações e inserções nos meios de divulgação. Estamos planejando a realização de workshops em três universidades, além de seminários específicos para os filósofos clínicos com certificados A e B e alunos que estejam fazendo estágio supervisionado.
No próximo ano vamos realizar programas de qualificação de professores de Filosofia Clínica em Belo Horizonte, Divinópolis, São João Del Rei e, ao mesmo tempo, vamos manter acompanhamento junto a todos os filósofos clínicos para avaliar, contribuir e participar da melhoria da qualidade do atendimento terapêutico. No mês de julho do próximo ano realizaremos um seminário da Comissão de Ética com o objetivo de verificar como está o atendimento clínico, as dificuldades e os problemas que podem prejudicar o trabalho clínico.
Ainda em 2002, junto o Centro de Filosofia Clínica de São João Del Rei, projetamos a realização da Semana Nacional da Filosofia Clínica com exposição de livros, debates, apresentações de casos práticos, workshops, entre outras atividades.
Estamos trabalhando com vistas a estabelecer parcerias com universidades, no Estado, para oferecer Filosofia Clínica em nível de pós-graduação. Está em análise pelo Instituto Packter um convênio com a Universidade Newton Paiva, há contatos e entendimentos com outros dois centros universitários com a mesma finalidade.
Também está em andamento a realização de parceiras e convênios para estágios supervisionados em hospitais, escolas, sindicatos e empresas. As primeiras experiências são realizadas com escolas estaduais de São João Del Rei.
Pretendemos, em breve, inaugurar a página da AMFIC na Internet.
Pergunta – No seu modo de entendimento, para onde caminha a Filosofia Clínica?
Sebastião Soares - Indagar para onde caminha a Filosofia Clínica já demanda um exercício de futurologia. Acredito ser possível examinar o que é a Filosofia Clínica hoje e, a partir daí, extrair indicativos e estabelecer nexos causais de possibilidades futuras. A Filosofia Clínica é um campo imenso de possibilidades que se consolida a partir da sua afirmação real e concreta como alternativa terapêutica.
Assim pensando, em muitos momentos fico a imaginar a solidão do filósofo Lúcio Packter buscando respostas e raízes nos seus inúmeros recortes de cartolina, nos demorados e exaustivos testes de colheita categorial e montagens de EPs, nas incontáveis horas de gravação, nas diversas interações dialógicas experimentais e até mesmo nos vários encontros solipsísticos com personagens literários. Angústias, alegrias e inquietações de um jovem filósofo comprometendo-se com os sofrimentos do outro, buscando entendimento para as inquietações do homem, repondo as bases de uma novo humanismo. Às vezes imagino essas persistentes escavações à procura das fundamentações e, de repente, a insatisfação diante de tanto material acumulado. Uma nova busca marcada pela insatisfação frente ao que produziram e produzem outros terapeutas e outras terapias. O caminho e a decisão de ancorar essa pesquisa no solo extenso da filosofia, desde a sua remota emergência até as contribuições mais recentes, tudo isso me faz pensar os caminhos da Filosofia Clínica. Das pesquisas iniciais, das primeiras suspeitas de que esse era um caminho possível; da suas manifestações públicas iniciais, da primeira turma em Porto Alegre e do seu espraiamento pelo Brasil. Quanto caminho percorrido.
Com certeza a Filosofia Clínica já ultrapassou algumas etapas. Hoje ela se consolida como a proposta de uma nova terapia revolucionária; demonstra evidências terapêuticas nos vários consultórios espalhados pelo País; atravessa as fronteiras das universidades; se oferece como alternativa de pós-graduação e ensaia a superação das fronteiras nacionais ao estabelecer diálogos com filósofos de outros países. Há, nesse perpassar histórico, a certeza de que se abriu um novo horizonte para os filósofos; de que está em efetividade a realização prática da filosofia.
Sim, a Filosofia Clínica faz barulho, mas, se o caminho se faz no caminhar, ela ainda é a árvore que pode virar floresta. Uma possibilidade, um campo de possibilidades, justificado por várias probabilidades. Dentre estas a coragem e ousadia em recusar o lugar comum das tipologias e de se afastar da náusea tedioso das doenças mentais confutadas com os juízos preconceituosos das normalidades. O novo humanismo da Filosofia Clínica pressupõe o exercício de uma nova terapia cujo centro é o respeito a alteridade, com uma recusa radical às acrobacias terminológicas da des-razão. Com isso a Filosofia Clínica instaura um novo registro que não se funda em imputações alienistas, ela oferece o universo aberto da Estrutura de Pensamento em contraponto ao horizonte fechado das tipologias. Com todas as implicações decorrentes. A pessoa como ela é, na sua medida, na sua singularidade existencial, na sua forma e conteúdo, únicos e específicos.
A Filosofia Clínica se propaga e se difunde como uma construção coletiva, aberta às inúmeras possibilidades do seu caminhar. Este é o percurso que aponta o caminho da Filosofia Clínica, uma perspectiva histórica para um universo de possibilidades, cujo limite será o seu engessamento e a sua cristalização. Estes são os males a evitar. Estes sãos os nossos riscos. Petrificação e dogmatização fundamentalista são incompatíveis com a proposta criada por Lúcio Packter. As evidências terapêuticas da Filosofia Clínica e a sua construção teórica são diretamente proporcionais à sua capacidade de manter-se como universo aberto, estão em consonância com a amplitude da sua transparência. Já consolidada, até agora, como arte terapêutica, a Filosofia Clínica ainda é o amanhecer de uma história que será construída por todos nós, desde que não sejamos os absolutos da verdade nem os proprietários do saber.
Pergunta – O senhor foi aluno de Helio Strassburger, filósofo clínico renomado em muitos estados. Como foi a experiência de ter trabalhado com Strassburger
Sebastião Soares - O professor Hélio Strassburger é, antes de tudo, um semeador; ele cultiva a Filosofia Clínica como amor e a ela se entrega, como doação e oferta. Este é o seu projeto, que se confunde com a sua própria vida. O “tio Helinho”, no designativo carinhoso de muitos dos seus alunos e alunas de Minas Gerais, espalha a Filosofia Clínica pelo Brasil. A sua prática clínica o torna referência, seja no consultório ou nas salas de aula. Como professor, sempre encontramos nele o estímulo e o incentivo. De acordo com o professor Hélio, os horizontes da Filosofia Clínica são sempre radiosos. Claro, dependente do esforço, da dedicação e da doação de cada um. Na nossa convivência, ele é o porto onde podemos ancorar as nossas dúvidas. Ao professor Hélio Strassburger devoto profundo respeito e gratidão.
"DA ARTE E DO ARTISTA", por Isabel Rosete
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«AS VOZES DA FILOSOFIA E DA POESIA, DAS ARTES, AS MINHAS E AS DE ALGUNS
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Há 8 anos
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